Pe. Saverio Paolillo (Padre Xavier) *
Caríssimo Estatuto da Criança e do Adolescente,
Fiquei sabendo que no próximo mês de julho você cumpre 25 anos. Parabéns. Fico feliz em saber que você conseguiu alcançar essa meta. Estou com inveja de você. Eu, infelizmente,não tive a mesma sorte. São mais de 19 anos que fui embora desse mundo e estou morando no Além. Em 1996, quando ainda tinha 15 anos, fui morto a bala na periferia de São Paulo. Meu nome era Luiz Augusto, mas todos me chamavam de Guto. Fiz a besteira de cair no crack. Vivia na rua. Para sustentar o vício fui me envolvendo em pequenos furtos. Um dia fui parar na Febem. Alguém vinha me alertando a respeito dos perigos que estava correndo e das encrencas em que estava me metendo, mas a droga buzinava bem mais alto no meu ouvido e me puxava com força. Uma noite fui baleado num barzinho. Fiquei em coma por alguns dias. Não resisti aos ferimentos e fui embora antes do meu prazo vencer. Ao chegar a esse lugar percebi que não era o único. Já havia um monte de meninos e meninas da minha mesma idade, quase todos da quebrada, negros e pobres como eu, todos vindo da periferia. E o pior é que não para de chegar gente. O Coroa, é meu jeito carinhoso de chamar o Papai do Céu, está muito preocupado. Ficou sabendo que, se o Brasil não tomar vergonha na carae não fizer alguma coisa séria para reduzir a violência, 42 mil crianças e adolescentes brasileiros, de 01 a 19 anos, poderão morrer assassinados até 2019. Morre mais gente no Brasil do que nos países onde tem guerra. O Brasil está entre os países mais violentos do mundo. Confesso que tenho uma vontade louca de voltar para a terra para convencer a garotada a sair dessa. Poderia estar formado, casado e trabalhando. Mas a violência berrou mais alto e seu poder de fogo matou eu e desfez meus sonhos. Tombei e vejo muitos outros tombarem. O que mais me chateia é constatar que a cada dia que passa chega uma molecada mais nova. Inclusive tem criança que não tem nada a ver. Morreu de uma daquelas balas perdidas que se acham aos montes pelas vielas e ruas da periferia. É menino e menina que morreu brincando na pracinha, dormindo numa humilde caminha atrás de uma parede de madeira, indo e vindo da escola, chupando sorvete e empinando pipa. Que dor. No meu caso o povo lá embaixo diz que “eu fiz por merecer”, mas estes coitadinhos e coitadinhas não têm culpa nenhuma no cartório. Vieram à força, antes da hora, arrancados do colo de mães e pais que não se conformam; ceifados prematuramente por indivíduos que desistiram de ser humanos, com a cumplicidade de uma sociedade que dá mais valor às coisas do que às pessoas.
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Não dá para continuar assim. Precisamos fazer alguma coisa para salvar a garotada. Nãoquero que outros moleques passem pela mesma tragédia que eu vivi e não aguento mais vero desespero das mães derramando lágrimas sobre os jovens corpos de seus filhos.
Em primeiro lugar quero lhe alertar: cuidado porque também você tem os dias contados. Há um movimento para mudar sua cara e seu coração. Há gente que entende que é colocando “menor” na cadeia que se acaba com a violência. Esse é papo furado. Muitos de nós passaram por essa experiência. A cadeia não recupera ninguém, só ajuda a piorar a situação. É aí que se aprende a “lei do cão” para sobreviver. Eu já vi “laranja” virar bandidão, moleque do interior se articular com os caras da capital, “ladrão de galinha” se tornar esquartejador, agente penitenciário virar quase louco pelas condições desumanas de trabalho. Cadeia brasileira é que nem caixão onde, com a bênção da omissão das instituições, enterram-se definitivamente as sobras da dignidade humana. O engraçado é que todo mundo sabe que o sistema brasileiro é falido, mesmo assim, acha ainda que é solução. Precisamos alertar a sociedade sobre esse equívoco. Reúna logo seus amigos e faça valer suas intuições. O que fez muita falta em minha vida foi o amor. Pai não tive e mamãe andava muito ocupada para sustentar a gente que nunca tinha tempo para nós. Peça com insistência para fortalecer os vínculos familiares e comunitários para que toda criança que vem ao Brasil seja amada desde a barriga da mãe. Se tivesse contado com o calor do abraço e a ternura de pai e de mãe com certeza não teria ido para a rua onde tive que me virar para sobreviver. Até agora sinto falta de uma família. Exija ajuda para as famílias para que cada criança possa viver com dignidade em seu próprio lar. Boa parte da violência praticada tem raiz na violência sofrida.
Estudei pouco. E como eu, quase todos/as os/as que estão aqui comigo não concluíram o ensino fundamental. Não foi por falta de vaga, mas porque a escola não conseguiu me cativar. Era uma bagunça só na sala de aula. A coitada da professora tinha que encarar de 35a 40 alunos. Não havia carteira para todo mundo, faltava material e os assuntos tratados não tinham nada a ver com minha vida e a realidade da comunidade. Devo admitir que a rua me ensinou muito mais que os tempos que passei na sala de aula. Não basta construir escola, precisa de uma educação feita com amor, que dá valor aos guris e que ajude a entender e mudar esse mundo podre que está por aí. Não compensa estudar para virar mais um trabalhador explorado, condenado a ganhar o mínimo, porque de salário não tem mesmo nada. Se a escola fosse boa quantos moleques estariam nela no lugar de ficar na rua fazendo coisas erradas. Por favor, fale para os deputados que, no lugar de se preocupar com a redução da idade penal, se empenhem com a redução da falta de vergonha na cara, da corrupção, do desvio das verbas públicas, sobretudo daquelas destinadas à educação e saúde. Com todo o dinheiro desviado daria para garantir uma escola de qualidade que inclua na sociedade cidadãos e cidadãs com cabeça boa, espírito crítico e vontade de se comprometer para tornar o Brasil mais justo. Não podem botar moral na garotada e se autopromover como defensores do fim da impunidade, os políticos e administradores que usam todo tipo de recurso para se safar das punições e das consequências da lei da ficha limpa. Eu sempre aprendi que adulto tem que dar bom exemplo. Eu por um pequeno roubo passei meses na Febem. Sei de políticos que roubaram milhões e não passaram nem um diana cadeia. Como deve pagar o “menor’ que mata assim deve ser enquadrado como assassino o político que, ao desviar dinheiro, permitiu que os pobres morressem nas filas dos prontos socorros por falta de atendimento e milhares de crianças e adolescentes se envolvessem na criminalidade por falta de acesso aos direitos humanos fundamentais.
E para terminar, você sabia que a gente bate uma pelada todo dia? Aqui tem tempo e espaço para o lazer. No Além há praças e parques à vontade. Tem céu de sobra para empinar pipa. Nada disso tive quando passei pelas terras brasileiras. Vivi entulhado numa favela onde não tinha espaço para nada. Na época de pipa tinha que subir na laje. Já corri o risco de cair. Se saísse para o asfalto corria o risco de ser atropelado. Sabe como é que é: quem empina pipa fica olhando para o alto e deixa de se preocupar com o que acontece embaixo. É terapia pura. E que dizer do emaranhado de fios elétricos que como teia de aranha aprisionam as pipas impedindo-lhes de subir até o mais alto céu? Quantas pipas cortadas, assim como nossas vidas ceifadas prematuramente. Por favor, peça às autoridades que levem a sério o lazer das crianças e adolescentes.
Querido Estatuto, luta para melhorar e não para piorar. Faça valer o que você tem de melhor para as crianças e adolescentes brasileiros/as. Se você funcionar direito vai diminuir muito o número de moleques que vem para cá. Você é o único instrumento que, se funcionar para valer, pode acabar com o extermínio da garotada pobre de periferia.
Empodera os conselheiros e as conselheiras de direito. Tem uns que trabalham para caramba, mas tem outros que estão no conselho só de enfeite ou, pior ainda, a serviço dos interesses do poder público. É verdade que boa parte dos administradores públicos fazem pouco caso dos conselhos e não lhes fornecem a estrutura indispensável pelo seu funcionamento, mas nada disso pode se tornar pretexto para justificar e encobertar a omissão. É hora de voltar às ruas, de fortalecer as redes e de pressionar as instituições. Vale a pena fazer memória e resgatar a garra do movimento em prol das crianças e adolescentes. Tudo que foi conseguido até agora foi na marra. O descaso das autoridades para com a causa da criança e do adolescente se torne combustível para a mobilização e o enfrentamento. Bota para funcionar todos os mecanismos previstos para encostar o poder público na parede e garantir os direitos humanos às crianças e adolescentes.
Enfim, convence os adolescentes a embarcar nessa luta. A melhor ajuda que podem lhe darnesse momento é desistir da violência e lutar pelos seus direitos no respeito da legalidade. Demos respeito para receber respeito.
Vou rezar pelo seu sucesso e vou organizar aqui no Além uma novena para o povo procurar soluções melhores e mais eficazes para diminuir a violência. A receita melhor é implementar políticas públicas de qualidade.
Desejo-lhe ainda uma vez um feliz aniversário. Espero que não despachem você para o espaço como fizeram comigo. Desejo-lhe longa vida para a longa vida das crianças e adolescentes brasileiros.
Puxa, que saudade de vocês todos. Um beijo no coração.
Luiz Augusto – Guto
PS: inesquecível Guto, você mora em nosso coração como todas as crianças e os adolescentes mortos prematuramente pelo descaso com as políticas públicas exigidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente. Em sua memória dedico este texto a todos aqueles e aquelas que sobreviveram e poderão viver com dignidade graças à luta pela manutenção e efetivação das conquistas contidas no Ecriad. Conte conosco. Quem topar, entre na luta com tudo. Agora é pra valer.
* Pe. Saverio Paolillo é missionário colombiano da Pastoral do Menor e Carcerária – Centro de Direitos Humanos dom Oscar Romero (CEDHOR/Paraíba)
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