O Brasil recebeu delegações de todos os continentes para realizar, no começo de dezembro do ano passado, o Fórum Mundial de Direitos Humanos. Essa ampla área foi analisada e prestigiada, no governo do ex-presidente Lula, a partir de 2003, com a criação de uma secretaria extraordinária, assim como ocorreu com a de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a de Políticas Públicas para as Mulheres. Tais secretarias constituíram-se, desde então, na arena de denúncias, cobranças, formulações e execução de políticas para esses segmentos. Atraem as mais sérias contribuições construídas pela academia e pelos movimentos sociais. São a voz, a cara, o coração e o compromisso do governo federal com a garantia de direitos humanos para todas e todos.
Apesar disso, porém, uma distância estelar separa as estruturas administrativas criadas, suas diretrizes e metas, as expectativas geradas pela sociedade ante seus desempenhos, dos respectivos orçamentos que são destinados e executados para as respectivas políticas públicas de cada uma dessas pastas.
Mesmo com uma década dessas estruturas, ainda revelamos anualmente gravíssimos indicadores de violência contra a mulher, seja no campo doméstico, familiar e do trabalho, seja na precariedade da atenção à saúde da mulher, em especial nas áreas materno-infantil e frente à elevada mortalidade por doenças como o câncer de mama. Da mesma forma, cresce assustadoramente a violência contra jovens e adolescentes, em especial contra negros e pobres, com a taxa de vitimização dos jovens de 14 aos 29 anos sendo 250% superior em relação às faixas etárias anterior e posterior a esse universo atingido, segundo revelado pelo Mapa da Violência de 2013. Nas áreas sociais essenciais, descritas como direitos já desde o Artigo 6º da Constituição Federal de 1988, o quadro avança a passos lentos.
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Mesmo com tantas eleições presidenciais ocorridas desde 1989, com uma sucessão de planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias anuais, de lá para cá, o país não construiu ainda um Anexo de Metas Sociais que acompanhe as rígidas metas fiscais (metas para o câmbio, para os juros, a inflação, a relação dívida/PIB e o superávit primário), anualmente estampadas em suas leis orçamentárias de curto prazo.
A partir do ano 2000, na Lei de Responsabilidade Fiscal, e em particular, em 2012 e 2013, nas respectivas leis de diretrizes orçamentárias, isto se agrava com a determinação de que a elaboração e a execução do orçamento federal deverão observar, em primeiro plano, as metas do superávit primário, receita fiscal retida para o pagamento de juros da dívida pública.
Como provam os números das execuções orçamentárias e os percentuais das respectivas secretarias especiais no conjunto da administração pública federal, fica evidente que se de um lado há discurso, interlocução e estruturas na administração federal para garantir e efetivar direitos humanos, do outro, na prática, não há orçamentos que consolidem de forma ampla as diretrizes e metas que deveriam emanar desses discursos e dessas estruturas.
A política fiscal foi sequestrada de seu mais nobre objetivo: financiar o desenvolvimento e as políticas sociais, servindo, desde 1999, ao processo de acumulação do capital na esfera financeira, gerado pela hegemonia do trinômio “combate à inflação – juros altos – dívida pública” nas contas nacionais. Até quando o governo vai seguir com essa dicotomia? Até quando vai sustentar um discurso forte nos direitos humanos com recursos irrisórios frente às graves e históricas demandas requeridas pela sociedade? É possível, de fato, garantir direitos humanos quando a prioridade do Tesouro é remunerar o capital rentista curvando-se às teorias monetárias da inflação de demanda na economia nacional? Não acredito.
Os movimentos sociais que lutam pelos direitos humanos, das mulheres, dos negros, indígenas, da comunidade LGBT, das pessoas com deficiência, das crianças e adolescentes têm grandes desafios pela frente neste ano de 2014. Em primeiro lugar, não podem se deixar satisfazer pelas ínfimas parcelas de recursos aplicados pelo governo federal, direta e indiretamente, nos setores em que lutam. Em segundo lugar, é preciso denunciar a contradição entre o discurso de direitos e a prática conservadora na área de orçamento e finanças. Em terceiro lugar, devem cobrar profundas alterações na lógica macroeconômica vigente, nas políticas de combate à inflação, na elaboração e execução dos orçamentos sociais. Sem isso, ficarão reféns da rasteira disputa eleitoral PT X PSDB ou similares, legitimando os limites do atual projeto que, em que pesem as boas intensões e a seriedade de muitas pessoas envolvidas na atual administração, não irá muito longe se continuar acendendo uma vela a Deus e outra ao Diabo nessa questão.
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