Ronald Vizzoni Garcia *
O governo Michel Temer, iniciado em maio, chega a 2017 com muito o que ser avaliado. Muitas avaliações triviais se limitam a constatar o ritmo mais ou menos intenso com que o governo costura sua agenda de reformas. A referência aos “direitos humanos”, explicitamente, nunca foi um assunto central na agenda do governo. Evidente que toda política pública, que visa a garantir direitos do cidadão, se insere no campo dos direitos humanos. Implicitamente, se verbalize ou não, muitas das questões de Estado envolvem os direitos humanos. No caso de Temer, o que espanta é a quantidade de situações em que a temática dos direitos humanos, com o uso do termo explicitamente, transpassou o governo de Temer de diferentes maneiras. Via de regra, com contornos negativos.
Governo e sinalizações
Na formação do governo, a redução de ministérios incluiu a retirada do status ministerial das secretarias de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que já haviam sido unificadas, em um único ministério, no final do governo Dilma. A Secretaria de Direitos Humanos se subordina ao Ministério da Justiça. Um desenho institucional, já experimentado nos mandatos de Fenando Henrique Cardoso.
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A indicação de uma pessoa com amplo conhecimento do tema, Flavia Piovesan, para a Secretaria de Direitos Humanos poderia ter representado mais notoriedade para o governo interino neste campo. Ela é procuradora do Estado de São Paulo e possui ampla militância acadêmica no tema dos direitos humanos. As suas posições pró-aborto, lei de cotas, refugiados, política de drogas, redução da maioridade penal, Estatuto do Desarmamento, defesa dos direitos LGBT, recepção de tratados internacionais de direitos humanos na constituição de 1988, dentre outras vão ao encontro das bandeiras de uma série de entidades de movimentos sociais; consequentemente, a nova secretária é hostilizada por grupos de extrema direita, que apoiam o governo. Ironias da história, Michel Temer foi o orientador de Flavia Piovesan no mestrado.
A indicação lhe rendeu algumas “saias justas” como a manifestação contrária do centro acadêmico 22 de Agosto, do curso de Direito da PUC-SP, do qual foi a primeira mulher a ocupar a presidência. Os estudantes de direito lembram que o titular da pasta da Justiça, Alexandre de Moraes (PSDB) tem um histórico como secretário estadual de Segurança Pública envolto em denúncias de perseguição de movimentos sociais e de brutalidades contra as ocupações de escolas de estudantes secundaristas. Em seguida, 23 entidades e 368 pessoas relacionadas com os direitos humanos assinaram uma outra carta aberta criticando a decisão. Em suas primeiras entrevistas, teve de explicar por que não considera o governo Temer ilegítimo e a perda do status de ministério, de seu cargo, “um retrocesso lamentável” e o significado da ausência de mulheres, no primeiro escalão (entrevista à BBC – 18/05/16).
Concomitantemente, passou em branco a indicação do primeiro homossexual assumido, no governo, para pasta da Cultura, Marcelo Calero (PSDB), ex-secretário de Cultura do Município do Rio de Janeiro na gestão Eduardo Paes. Os críticos da ausência física de mulheres e negros no primeiro escalão pouco celebraram a presença de um ministro gay, publicamente assumido, no primeiro escalão.
A pasta da Cultura já carregava consigo muita tensão. A reação da classe artística à extinção do MinC foi grande, ao ponto do status de ministério ser restituído. Calero, em junho, fez críticas a Kleber Mendonça Filho e Sonia Braga, responsáveis pelo filme Aquarius, por terem criticado o impeachment, denunciado como um golpe, no Festival de Cannes. Em julho, contrariando declarações anteriores, Calero pediu a reintegração de posse dos espaços vinculados ao MinC que eram ocupados por manifestantes do movimento “Ocupa”, no Rio e em São Paulo. Em julho e setembro, foi hostilizado em eventos da Biblioteca Nacional; foi vaiado no Festival de Cinema de Gramado, chamado de golpista e fascista durante discurso no Festival de Cinema de Petrópolis. Em outubro, Marcelo Rubens Paiva e o artista visual Artur Omar recusaram a medalha da Ordem do Mérito Cultural, oferecida pelo MinC. Ambos alegaram a ilegitimidade do novo governo. A crise com a pressão do ministro Geddel Vieira Lima é mais conhecida e foi vista como causa da saída do ministro. É difícil estabelecer até que ponto esse momento não foi visto por ele como uma saída “estratégica” de um ministro fraco e sem grandes possiblidades. O certo é que a nomeação de Calero só rendeu pontos negativos ao governo interino, do início ao fim.
Ainda na escala dos simbolismos, o Prêmio Direitos Humanos, dado pelo governo federal a pessoas, ONG e órgãos públicos que se destacaram na defesa dos direitos humanos, passou a ser entregue de dois em dois anos e não mais anualmente, como era feito desde 1995, quando foi criado por Fernando Henrique Cardoso. Essas questões são sempre simplificadoras, mas eram importantes na construção de uma percepção inicial positiva. A famosa primeira impressão.
Na política externa, o chanceler José Serra não ajudou muito o governo. Desconhecimento da sigla NSA (Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos), dos países integrantes dos BRICS (chegou a incluir a Argentina), declarações misóginas no México, tentativas de “comprar” o voto do Uruguai contra a Venezuela no Mercosul etc. Somam-se a isso as acusações de repasses da Odebrecht de US$ 23 milhões. O ministro perde espaço, dia a dia, no governo Temer. Seu papel foi irrelevante, tanto na ida a China, quanto na viagem aos EUA.
Contrariando suas posições, quando concorreu à presidência, em 2010, José Serra se absteve na votação do relatório da ONU, aprovado. Acredita-se que, entre 996 e 1054 execuções ocorridas no Irã, em 2015, seria o maior contingente nos 20 últimos anos. Em 2010, Serra qualificou o Irã como uma ditadura “fascista e feroz” e questionou as negociações bilaterais dos governos Lula. A Comissão de Relações Exteriores do Senado (CREDN), em maio de 2015, convocou chanceler Mauro Vieira a dar explicações sobre a abstenção do Brasil em outra resolução sobre direitos humanos no Irã, no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Serra apequenou o Brasil nas relações internacionais e se apequenou como candidato para 2018.
Interno/externo
Toda a arquitetura internacional e regional dos tratados dos direitos humanos é feita para que governos, ao sabor de seus interesses e mudanças conjunturais, sejam refreados nas possibilidade de violar e suprir direitos. O controle das instituições estatais e sua manipulação são um problema para o combate à violação dos direitos humanos.
A combinação de pressão doméstica e internacional não é novidade para os governos da Nova República. Todos os presidentes sofreram algum tipo de pressão. A presidente Dilma, por exemplo, protestou muito contra a rápida condenação internacional das obras de Belo Monte. A novidade, para Temer, é que a pressão antecedeu sua posse. No processo de afastamento de Dilma Rousseff, o Partidos dos Trabalhadores optou por recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos na tentativa de interromper o processo. Em maio, a polêmica atingiu seu ponto alto. Foi a manifestação do secretário-geral da OEA, Luis Almagro, de fazer uma solicitação, uma “opinião consultiva” à Corte Interamericana de direitos Humanos. A manifestação se refere a “incertezas jurídicas” sobre dois itens centrais. Um diz respeito à elevada participação de parlamentares, potencialmente, implicados em casos de corrupção. E o segundo, à própria legalidade do processo, diante das “respostas insatisfatórias” oferecidas. Foi a primeira vez que um secretário-geral da OEA tomou essa inciativa. Em outubro, o presidente Temer teve uma reunião com L. Almagro, fora da agenda oficial, no palácio Itamaraty, com a presença do ministro das Relações Exteriores, José Serra.
A defesa do governo Lula também trouxe, para o debate, a questão dos direitos humanos, inclusive recorrendo ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Lula acusa o juiz Moro de praticar “lawfare”, uso dos instrumentos jurídicos para perseguição política, com uso ilegítimo de informações na mídia (os vazamentos seletivos). Violação relacionadas aos direitos civis e políticos do ex-presidente. Um ponto que merece destaque é a presença do advogado Geoffrey Robertson na defesa do ex-presidente, figura relacionada aos direitos humanos, internacionalmente famosa, que já trabalhou em processos controversos, envolvendo nomes como Julian Assange, dono do Wikileaks, o ex-lutador de boxe Mike Tyson e o autor indiano Salman Rushdie, além de ter denunciado o Cartel de Medelin.
Em julho, foi entregue uma carta aberta ao Secretário de Estado Americano, John Kerry, assinada por 43 membros do Congresso Americano, questionando o processo de impedimento, relatando, entre outros fatos, que, em 30 dias de governo o presidente Temer teve três ministros afastados por escândalos. Citam a extinção dos ministérios relacionados aos direitos humanos e riscos para programas sociais. Em sua visita aos EUA, para o tradicional discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (20/09/16), o presidente Temer teve de amargar o protesto silencioso de seis países, que se retiraram para não ouvi-lo falar: Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Equador, Cuba e Costa Rica. No Brasil, o número de 95 mil refugiados acolhidos pelo país, citado por Temer no discurso, foi corrigido para 8800 pelo Comitê Nacional de Refugiados.
Em novembro, foi aprovada uma moção com 11 pontos no parlamento europeu. A moção apresentada pelo grupo Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde GUE/NGL sobre: os atos de violência perpetrados contra as comunidades indígenas do Brasil; deplora a situação que a população Guarani-Kaiowá enfrenta em termos de pobreza e direitos humanos, em Mato Grosso do Sul; o enfraquecimento da FUNAI, expressa preocupação com a PEC 215, que transfere para o Congresso Nacional os processos de demarcação de terra, dentre outras preocupações.
No mês de dezembro, 16 organizações de direitos humanos manifestaram interesse público de entregar à Organização dos Estados Americanos (OEA) um documento com denúncias de ações do governo brasileiro. O principal alvo é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/16, conhecida como a “PEC do Teto”, que limita gastos públicos em áreas como saúde e educação por até 20 anos. As entidades criticam a extinção dos ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres, da Juventude e dos Direitos Humanos e a interrupção de programas de proteção aos direitos humanos.
Ainda em dezembro, caiu, como uma bomba as declarações do relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, de que “Se adotada, essa emenda bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, colocando, portanto, toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais”. Para o relator: “uma coisa é certa. É completamente inapropriado congelar somente o gasto social e atar as mãos de todos os próximos governos por outras duas décadas. Se essa emenda for adotada, colocará o Brasil em uma categoria única em matéria de retrocesso social”. O relator recomendou amplo debate sobre as medidas e prudência.
Todos os indícios é que o governo Temer continue sendo posto de lado nas questões internacionais importantes; ao mesmo tempo em que é questionado sobre sua política doméstica. Nenhum chefe de Estado ligou para parabenizar o presidente interino, após sua posse. O presidente interino recebeu “comunicados” de “felicitações” do Secretário de Estado John Kerry (EUA), Presidente Mauricio Macri (Argentina), Presidente Pedro Pablo Kuczynski (Peru) e Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon. O apoio, por breve carta dirigida a Torquato Jardim (Ministro da Transparência, Fiscalização e CGU), de Jimmy Carter não tem grandes efeitos, após a eleição de Donald Trump. Esse sim uma incógnita, que não mencionou o Brasil durante a campanha e não parece ter a menor disposição de vir a mencionar.
Gasto social e vulneráveis
O documento programático “Ponte para o Brasil”, oferecido pelo PMDB (Fundação Ulysses Guimarães) à sociedade como contribuição, parece encontrar um vilão, dentre outros, para a crise: “No Brasil, a maior parte do orçamento chega ao Congresso para ser discutido e votado, com a maior parte dos recursos já previamente comprometidos ou contratados, seja por meio de vinculações constitucionais, seja por indexação obrigatória dos valores. Assim, a maior parte das despesas públicas tornou- se obrigatória, quer haja recursos ou não. Daí a inevitabilidade dos déficits…” (pág. 8). Uma tese nada original de que a Constituição de 1988 e suas garantias não cabem no orçamento. A aprovação da PEC 241 trouxe, para as políticas em torno de políticas sociais, uma associação com o déficit e direitos sociais. É sobre essas políticas que incidem as limitações de gastos.
Em diversas áreas de políticas públicas, o governo coleciona opositores preocupados com seus direitos. Não ajudou muito as declarações iniciais do Ministro da Saúde dizendo que ia reduzir o tamanho do SUS. O deslocamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário para junção com ministério do Desenvolvimento Social. Este novo ministério e o da Agricultura entregues a dois parlamentares ligados aos ruralistas, não parece dar muitas esperanças de grandes avanços sociais. O governo passa a imagem de tatear, no escuro, formas de desmontar e/ou neutralizar a estrutura de assistência social. Rumores de que o foco deve se centrar nos 5% mais pobres, do fim do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e criação de “visitares sociais” (fiscais), como parte do bolsa família, são cogitados. Populações indígenas veem com preocupação o esvaziamento da FUNAI e da atenção à saúde, bem como a transferência dos processos de demarcação de terras para o Congresso Nacional. Na questão ambiental, preocupa a urgência do governo em que a “segurança jurídica” de empresas, que venha a celebrar iniciativas de parcerias público-privadas, não esbarrem em “entraves” de autorizações de órgãos públicos do meio-ambiente.
A proposta inicial de reforma educacional enxugando os conteúdos humanísticos de Sociologia, Filosófica e Artes, em favor de melhor desempenho em Matemática e Português, além de fazer uma falsa escala de prioridades, parece apontar as humanidades e sua reflexão como algo supérfluo. O Congresso Nacional retirou a medida da proposta e o Ministério Público Federal põe em dúvida o uso do instituto da medida provisória para essa finalidade. Para um governo que tinha tanta urgência em reformar o ensino médio, as engrenagens das instituições democráticas parecem dar uma aula sobre o que não fazer em termos de educação. Estudantes secundaristas e universitários se colocam em linha de frente contra o governo. Tradicionalmente, são setores que sensibilizam as classes médias, sobretudo, quando tratados como caso de polícia.
Como pontos positivos o reajuste em 12,5% dos valores do Bolsa Família trouxe alguma esperança de que o governo conjugue a agenda negativa, com alguma agenda social positiva. Uma forma de melhorar sua popularidade. Recentemente, a declaração de que o governo autorizará saque das contas inativas do FGTS parece dar sinais de que medidas de reativação da atividade econômica podem ter aspectos sociais imediatos. A redução das taxas de juros dispensa comentários sobre seu impacto social.
Trancos e barrancos em 2017
A virada de ano não ajudou muito o governo. Os êxitos na aprovação da PEC 241, comemorados como sinal da qualidade de relação que o governo interino tem na sua relação com o congresso, não significaram o anúncio de novo clima para o governo.
A lista suja do trabalho escravo é um problema que vai fazendo volume embaixo do tapete presidencial desde maio. Quando for tomada uma medida efetiva, será vista como resultado de pressão e indicador de lentidão do governo. A “lista” é composta dos empregadores flagrados e multados por usar trabalho escravo. Ela tinha sido suspensa por decisão do ministro do STF, Ricardo Lewandowski, em 22 de dezembro de 2014. Foi uma liminar atendendo a uma ação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Essa liminar foi revogada por decisão da ministra Cármem Lúcia, em maio de 2016.
Cabia ao Ministério do Trabalho voltar a publicar a lista. Em face da demora, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou, no final do ano de 2016 com uma ação judicial requerendo a publicação da lista. O pedido foi atendido com uma liminar da Justiça do Trabalho, que obriga o ministro do trabalho, Ronaldo Nogueira, a divulgar a lista em até 30 dias, depois de ser notificado. Concomitante a essa ação, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a indenizar um grupo de 128 trabalhadores rurais, no Pará. A corte identificou que o governo foi conivente com o trabalho escravo na fazenda de criação de gado ”Brasil Verde” e estabeleceu a indenização US$ 5 milhões aos trabalhadores escravizados.
A virada de ano não ajudou a virar a página do governo. A crise dos presídios e a polêmica chacina de Campinas, com 12 pessoas mortas (nove mulheres) na noite de Réveillon, classificada por parte de entidades dos direitos da mulher como expressão do “feminicídio”(assassinato de mulher pela condição de ser mulher), no Brasil, deram o tom da crise na segurança pública. Devem-se lembrar as agressões homofóbicas, no metrô de SP, que culminaram na morte de um ambulante, que tentou apartar as agressões. O evento gerou comoção e pode, no futuro, ser confrontado com a inércia de governos na temática LGBT.
A saída do governo do secretário de Juventude (órgão vinculado à Secretaria de Governo), Bruno Moreira Santos, filho do policial e deputado estadual (PMDB-MG), “cabo Júlio”, em 06/01/2017, foi pra lá de simbólica. O evento poderia ter menor vulto, se não tivesse em meio de uma crise, retroalimentada por diversos episódios que mobilizam a opinião pública de forma emotiva e questionadora. Em um momento deste, o que jamais um membro do governo deveria fazer? Dar uma declaração fora de suas atribuições, que jogasse mais lenha no debate público (“tinham que matar mais”; deveria haver “uma chacina por semana”). O secretário rompe seu anonimato e a mídia é obrigada a dar, ao seu público, alguma referência de: afinal, quem é essa pessoa que trata das políticas públicas de juventude? O filho de um político do PMDB. Político condenado no caso da “máfia das ambulâncias” e por agressão contra a mulher. O próprio Bruno possui dois registros de ocorrência por ameaças e agressões contra sua ex-companheira e uma acusação de assédio sexual de uma ex-funcionária, em 2015. Via de regra, os órgãos de comunicação apenas citaram o parentesco, mas precisa de mais alguma coisa para que o cidadão se pergunte sobre os critérios de seleção do governo. O governo que tem dificuldades de encontrar mulheres para o primeiro escalão, encontra esse “primor” de inteligência verbal na juventude do seu principal partido. Que outras demonstrações de inteligência o governo Temer vai proporcionar em momentos críticos? Que perfil é esse de homem público, que passa a habitar a Esplanada dos Ministérios?
O mais pitoresco é que outros parlamentares da Câmara, que são de partidos da base do governo, aproveitam o momento para fazer o seu populismo penal para suas bases, pelas redes sociais. Não é necessário que a oposição critique o governo, basta que parte da sua base não veja vantagens em discutir a agenda “positiva” do governo e prefira chafurdar em declarações polêmicas para turbinar as redes sociais. O tempo não é um aliado de Temer.
O rompimento entre as facções criminosas PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho) nas regiões Norte e Nordeste do país já havia sido noticiado, não requerendo nenhum tipo de serviço de inteligência, que não fosse a simples leitura de jornais. Menos do que rixas pessoais entre bandidos envolvem rotas internacionais do tráfico de drogas. Tal qual terremotos, a grande chacina de 31/12/16 teve episódios anteriores e não há indícios de que “as placas tectônicas” se acomodem por si só. Em outras situações, como Pedrinhas (MA) e Carandiru (SP) a percepção do evento não foi de um problema federal, mas de problemas com a atuação de governadores específicos. Agora a percepção do fenômeno não parece ser de um problema apenas de governadores, por se dar, ao mesmo tempo, em diferentes estados (o pavoroso imaginário da violência de facções se nacionalizando)e pelas medidas que o governo federal impõe para socorrer os estados.
Um governo que quer fazer de um conjunto de reformas de austeridade a sua marca se desgasta fácil quando confrontado com a superlotação de presídios e a necessidade de investimentos preventivos e estruturais na segurança pública. A predileção de economistas de deixar seus argumentos didáticos, comparando com o orçamento doméstico, encontra aqui uma diferença clara. A ausência do poder público em agir, preventivamente, não gera apenas um reordenamento de despesas. A divulgação de que o Ministério da Justiça já havia negado pedido de ajuda, em novembro, ao Estado de Roraima, dá percepção de confirmação disto. O anúncio de que o governo federal vai enviar auxílio para Rondônia, Mato Grosso e Roraima e que está em negociação com outros estados, só passa a imagem de um governo que, por um lado, só reage tardiamente aos acontecimentos, por outro, ao liberar verbas antes negadas, demostra fragilidade com suas próprias metas orçamentárias.
Em meio a tudo isso, colapsam os estados, que conseguiram uma vitória na renegociação de suas dívidas, na Câmara Federal, logo ofuscada pelo veto presidencial. Esquizofrenia orçamentaria palaciana.
O plano de segurança, lançado por Temer, tem como medida central a liberação de R$ 3,4 bilhões para construção de cinco presídios. Com a ajuda de mutirões do judiciário espera-se reduzir a população carcerária em 15%, em 2018, e, em 2017, reduzir em 7,5% os homicídios dolosos (quando há intenção de matar) nas capitais. O plano pretende dar mais efetividade aos procedimentos relacionados com a aplicação da “lei Maria da Penha”, reduzindo a violência contra a mulher. O plano foi anunciado em 05/01/17, por Temer, explicado no dia 06/01/17 pelo ministro Alexandre de Moraes. No dia 08/01/17, diante de mais mortes de uma cadeia de Manaus, o ministro anunciou uma reunião para tomar “medidas imediatas” com os secretários estaduais de segurança, só para o dia 17/01/17. Não houve qualquer disposição do presidente de visitar os estados e acompanhar a crise penitenciária de perto.
A secretária de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, mais uma vez, se viu em uma situação delicada, ao mesmo tempo em que dava entrevista criticando o crescimento da massa carcerária e a expansão do sistema prisional como “paliativos”, o governo, do qual faz parte, anunciava o plano de segurança. A secretária parece ser a exceção para que o governo tente parecer ser o que não é: um governo com agenda positiva para os direitos humanos. Uma “inocente útil”.
Em uma coisa deve-se elogiar o presidente Temer. Assim que soube dos acontecimentos de Campinas e Manaus se posicionou pelo Twitter. Sobre Campinas declarou, da Base de Maranguape, no RJ, onde passava o ano novo: “Lamentamos profundamente as mortes ocorridas em Campinas. Manifestamos nosso pesar junto às famílias. Que 2017 seja um ano de mais paz!”. Algo que poderia ser dito por qualquer cidadão, não só do Brasil, mas do planeta. Na reunião do dia 5 de janeiro, assim se expressou: “Eu quero, numa primeira fala, mais uma vez, solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus”. O uso da expressão “acidente” gerou uma série de críticas, que levaram o presidente de volta ao Twitter para explicar, aos brasileiros, os “sinônimos da palavra ‘acidente’: tragédia, perda, desastre, desgraça, fatalidade”.
Esses temas servem para mostrar a inabilidade, para dizer o mínimo, no atual governo na hora de lidar com crises relativas à agenda dos direitos humanos. Atente-se bem, não está sendo dito que qualquer outro governo, desde 1988, ou que venha suceder a este, tenha como não ter que lidar com uma agenda de problemas e crises relativas aos direitos humanos; o que se diz é que esse Executivo Federal tem uma miopia crônica em lidar com essa agenda de problemas e crises.
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A criminalização de movimentos sociais, seja em processos mal explicados como a invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes, órgão de formação do MST; seja contra ocupações de escolas e prédios públicos, dá a dimensão do desespero de governos estaduais e federal em conter a ação de grupos descontentes. O surgimento de movimentos de extrema direita, dispostos a rivalizar nas redes sociais e nas ruas com seus supostos inimigos ideológicos, leva a um cenário complicado para o sistema político. Quadro preocupante, em que se remete para as outras instâncias, como o STF, a tarefa de pacificação de um país cada vez mais divido e conturbado.
No Brasil, instaura-se uma percepção da agenda de direitos humanos como “custo”. Opor uma agenda de expansão de direitos à agenda econômica, instaura um conflito distributivo. Seguir essa agenda, em um governo de transição, que não discutiu, em uma eleição, suas medidas impopulares, que salta, de denúncia em denúncia, é uma escolha temerária. Não há no presente qualquer indicador de que Legislativo e Judiciário não sejam reativos a essa crise. É mais uma questão de para o “colo de quem” vai a crise política e institucional, que se desloca no tempo. A economia deve dar sinais de recuperação, mas em indicadores como nível de emprego os resultados são mais lentos. Não colhendo uma percepção positiva na econômica, os graus de liberdade do governo diminuem.
Os atores políticos ponderam seus riscos e chances. Na melhor das hipóteses, caminha-se ao centro, a meio caminho da popularidade e da austeridade. Quanto mais o tempo passa para o governo Temer, mais chances há de que seja tragado pela força de atração de 2018 e as mudanças de comportamento de suas bases. Pobres e limitadas são as comparações com o golpe de 1964; mais pobres e limitadas eram as esperanças de que o governo Temer fizesse lembrar o governo Itamar. Em poucos meses, muito se falou de direitos humanos no governo Temer. Mas há uma clara limitação dos principais quadros do governo em entender o que isso significa.
* Ronald Vizzoni Garcia é cientista político e sociólogo (UFRJ). É professor do MBA de Supplay Chain (UVA). E-mail: ronaldvgarcia@yahoo.com.br
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