Fábio Flora *
Quem não se lembra do parlamentar chamando de “marco na depravação da sociedade” o beijo entre dois homens numa novela? Quem não se lembra do pastor vociferando contra um selinho entre duas mulheres – exibido pela emissora que, segundo ele, contribuía assim para “a destruição de valores morais fundamentais”?
Quem não se lembra do pai que – ao dar ao filho umas panelinhas de brinquedo, com o intuito de mostrar a ele que cozinhar é uma tarefa comum a homens e mulheres – foi xingado de canalha nas redes sociais por ensinar o menino a “fazer coisas de menina”? Quem não se lembra da cantora baiana incentivada a “arrumar um quarto” e acusada de “querer ibope” ao se declarar gay?
Quem não se lembra do garoto carioca espancado até a morte pelo pai – que o considerava “afeminado” por gostar de lavar louça e brincar de dança do ventre? Quem não se lembra do jovem paraibano que, após ser agredido e ter o cabelo raspado, foi morto com tiros na nuca e no peito? Quem não se lembra do rapaz asfixiado com uma sacola plástica e pedaços de papel colocados à força em sua boca, nos arredores de Goiânia? Quem não se lembra da travesti assassinada em São Paulo depois de ter sido jogada para fora de um veículo em movimento?
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Alguém dirá: são casos isolados. Não são. Aqui se registra um homossexual morto a cada (faço questão de escrever por extenso) vinte e oito horas. Quase um por dia.
E essas estatísticas tendem a piorar – salvo milagre que, obviamente, não há de se dar durante os cultos conduzidos por malafaias e felicianos.
Digo isso porque não acredito em dias melhores, menos homofóbicos, num país cujas escolas são impedidas – por setores conservadores da sociedade e da classe política – de adotar material didático que trata de questões de identidade e gênero (o chamado “kit gay”). Ou cujos governos cedem à pressão de tais setores – que consideram qualquer debate sobre o tema um incentivo à “promiscuidade” – e deixam de usar as salas de aula para combater a ignorância e o preconceito.
Também não acredito em dias melhores num país cujos atuais e temerários inquilinos do poder – em pleno século 21 – extinguem justamente o ministério ligado aos direitos humanos e planejam limitar os investimentos em educação (logo ela), desvinculando-os dos percentuais mínimos garantidos em lei. A fixação de um teto para os gastos na área certamente comprometerá não só a expansão e o desenvolvimento das redes de ensino fundamental e médio, como ainda a criação de vagas nas universidades e, consequentemente, a já precária qualidade de vida da população – em especial das comunidades mais vulneráveis, entre as quais as minorias sexuais.
Nesse sentido, caminhamos na contramão do que sugere um relatório recente das Nações Unidas sobre a América Latina, que pede que os governos locais, mesmo em tempos de recessão, não abortem as políticas referentes ao enfrentamento, por exemplo, da violência de gênero – políticas essas que possibilitaram conquistas sociais e econômicas a grupos historicamente relegados à marginalidade, como o LGBT.
Não bastasse todo esse retrocesso, há ainda uma milícia de parlamentares em Brasília disposta a derrubar o Estatuto do Desarmamento e liberar o porte de armas de fogo. É a tal bancada da bala. Financiada por fabricantes de… armas, ela vem recrutando cada vez mais seguidores com seu discurso bélico, segundo o qual todo cidadão “de bem” – hétero, claro – deve ter o direito de andar armado para se defender.
Como se vê, cidades como Orlando não são tão distantes quanto imaginamos. Quisera eu dizer isso porque mais brasileiros têm realizado o sonho de conhecer a Disney. Mas não. A boate Pulse, onde dezenas de pessoas foram assassinadas com um fuzil cuja munição era a homofobia, podia estar em qualquer uma de nossas esquinas.
Se ainda não está, sobra gente por aqui querendo abrir umas franquias.
* Cronista residente no Rio de Janeiro, Fábio Flora mantém o blog Pasmatório e perfil no Twitter.
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