Há quase três meses, com a chegada da covid-19 nos presídios do Distrito Federal (DF), relatei a preocupação dos internos do sistema prisional (após receber cartas) com a possibilidade de existir presos doentes. Trazendo à público a carta enviada por internos, externei minha preocupação como um ativista que conhece profundamente o sistema, cobrei dos gestores a criação de protocolos e sugeri a testagem de toda a comunidade carcerária, quando ainda não existia esse cenário de SURTO dentro da pandemia.
Superlotação
A superlotação do sistema sempre ocasionou problemas com o atendimento médico e com a qualidade da alimentação. O contingente de agentes é insuficiente e há uma sobrecarga de trabalho dos profissionais de segurança, saúde e outros servidores que atuam no sistema.
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A superpopulação carcerária passa de quinze mil presos, dispondo de pouco mais de sete mil vagas, o que contraria frontalmente quaisquer protocolos de cuidado à saúde e as próprias recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que alerta para o distanciamento e isolamento social como estratégia principal para evitar a propagação da covid-19. A superlotação favorece a existência de aglomeração permanente nas cadeias.
Baixo contingente de agentes
A quantidade de agentes por presos já é um problema deflagrado que contraria recomendações do Departamento Nacional Penitenciário que diz que para cada cinco presos é necessário pelo menos um agente, e no DF atualmente são mais de quinze internos para cada agente prisional, o que fez com que os direitos fossem restringidos gradativamente nas unidades durante os últimos anos.
Mais de 70% dos casos em Presídios brasileiros estão no DF
A incidência de contaminação na comunidade carcerária chega a quase 5% do total de pessoas do sistema, entre internos e trabalhadores. A situação nas cadeias representa mais de 30% dos casos de covid-19 em todo o Distrito Federal.
Em reportagem inédita produzida pela jornalista Manoela Alcântara, do portal Metrópoles, fica evidente em análise, comparando os dados do DF com o Brasil, o número de doentes é 35 vezes maior na população carcerária do DF. Enquanto a taxa de incidência na contaminação nos presídios da capital federal é de 4,55%, em todo o país é de 0,13%. Os seis presídios do sistema penitenciário do DF ultrapassam proporcionalmente a quantidade de contaminados nos países mais atingidos pela covid-19 no mundo.
GDF testou pouco mais de 15% da comunidade carcerária
Entramos então no terceiro mês após o primeiro diagnóstico, e até hoje foram realizados pouco mais de três mil testes nos mais de dezessete mil internos e policiais penais do DF. Sempre recomendamos a testagem total do conjunto da população carcerária, só assim a gestão teria o real panorama da covid-19 nos presídios.
Estamos falando de um lugar com pouca ventilação, superlotado, em celas que deveriam abrigar oito pessoas, mas que na verdade abrigam quarenta ou até cinquenta detentos. Em diversas diligências realizadas nas unidades ficou claro, verificamos in loco pessoas que não recebiam sequer um sabonete há três ou quatro meses.
Boa parte dos internos lavam suas roupas nas próprias celas, essas celas não possuem tanque, pia ou vaso sanitário, o que divide o banheiro e a cela onde todos ficam é apenas uma parede, e nesse “banheiro” tem um buraco no chão e um cano na parede, e é ali que mais de quarenta homens ou mulheres lavam as suas roupas e usam a água para qualquer outra necessidade do dia a dia.
O Conselho de Direitos Humanos do DF, em minha gestão, alertou há mais de dois anos sobre a necessidade urgente da construção de lavanderias adequadas nas unidades. Um relatório demonstrou preocupação com as condições de lavagem e secagem das roupas no interior das celas, essa ação favorecia um ambiente úmido e propício à proliferação de doenças de pele e outros agravos, inclusive doenças respiratórias. Ou seja, é um ambiente com as melhores condições de propagação de quaisquer doenças com transmissão.
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Mortes no sistema
Em decorrência da covid-19, quatro policiais penais se encontram internados, já os 590 presidiários que testaram positivo, sete estão internados com o novo coronavírus. Essa semana, após a morte do policial penal Francisco de Souza, na terça-feira, foi confirmada a segunda morte no sistema em decorrência da covid-19. Dessa vez, um interno da PDF 1.
Falta de informação
O governo cria uma situação de pânico quando não possibilita que os internos e internas mantenham algum contato com os familiares, que atualmente é a única política de ressocialização. Entre as diversas denúncias que recebemos alguns familiares souberam que os seus parentes presos haviam testado positivo pelo sistema de visitantes da internet, após transferência para o CDP 2, unidade destinada para quarentena na Papuda.
Alguns estados brasileiros já contam com o serviço de visita virtual, ou contato telefônico, mas nem a vídeo conferência dos internos com os seus advogados tem funcionado em sua totalidade aqui na capital. Não existem informações nem para os familiares, advogados e nem para as autoridades.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal (CDHM) divulgou uma nota recente denunciando que o titular da Subsecretaria do Sistema Penitenciário do DF (Sesipe) se negou a participar de reunião convocada para tratar do crescente número de infecções nas cadeias do DF.
Falta de EPI’s
Esse momento é adoecedor também para quem atua profissionalmente, após contato com a equipe de saúde prisional foi informado que além de não dispor de equipamentos de proteção individual para todos os profissionais que atuam nos presídios existe muita dificuldade com os próprios policiais penais, categoria que é composta na sua maioria por homens, culturalmente o sexo masculino possui dificuldades em adotar os devidos cuidados com a saúde e higiene.
O surto exige ação
O sistema está diante de um dos maiores desafios vividos até hoje. Olhar para essa preocupante situação com normalidade ou minimizá-la não vai ajudar a enfrentar o problema. Há a necessidade de atuação para a criação de protocolos de cuidados à saúde e higiene pessoal, bem como a realização de testagem em toda a comunidade carcerária e a criação de canais de comunicação com os familiares.
Além da necessidade de incrementação das equipes de saúde, é fundamental a criação de leitos e a garantia de equipamentos de proteção aos profissionais que atuam nas unidades, dentre outras ações. A situação é preocupante e exige a adoção de medidas imediatas! Nós estamos diante de uma bomba relógio, e as condições deste sistema, que já é um violador de direitos, foram construídas e são geridas diariamente como se não fossem feitas para ressocializar absolutamente ninguém.
A pandemia impõe para na sociedade em geral uma mudança estruturante na forma em que lida com a saúde e higiene pessoal. Aqui fora nós podemos nos mobilizar para confeccionar máscaras, podemos com a nossa liberdade até pedir ajuda, mas quem está sob o controle 24 horas do Estado não tem liberdade nem para lutar pela sua própria vida, por isso exige um esforço ainda maior de quem atua no sistema prisional para junto com esses internos construir o devido enfrentamento ao coronavírus.
É fundamental também um melhoramento significativo nas estruturas físicas das unidades, como a instalação de vasos sanitários, pias para lavar as mãos e a construção de novas unidades para a diminuição da aglomeração que apresentam as cadeias lotadas. É direito de todos os cidadãos, ainda que tenham conflitado com a lei, serem tratados com dignidade, e terem assegurados as condições adequadas para o devido cuidada com a saúde e a manutenção da vida.
Ativista, Michel Platini denuncia a situação nos presídios do DF e aponta demora na implementação de ações para enfrentamento de surto da pandemia de covid-19 dentro das cadeias.
Veja o vídeo: