No próximo dia 15 começa o julgamento do processo dos PMs executores do massacre ocorrido na prisão de Carandiru em 1992, em São Paulo. Iniciado no dia 9, precisou ser adiado por uma semana, já que, logo no início, uma das cinco juradas teve uma crise nervosa durante a leitura. Ela não conseguiu resistir ao relato das atrocidades cometidas pela polícia.
Como acontece com todo evento num processo que envolve ações humanas (guerras, migrações, julgamentos, etc.), o resultado não pode ser predito. Seria temerário arriscar uma opinião.
Entretanto, como o estado de São Paulo está, junto com algumas regiões da África e da Ásia – como Sudão, Irã, Kampuchea (Camboja), China, Pyongyang, e outros -, entre os maiores violadores de direitos humanos do planeta, surge a tentação de externar algumas suspeitas.
Por um lado, há aspectos históricos de nossa formação a considerar. Nós, latino-americanos, fomos colonizados por Espanha e Portugal, ou seja, o mais atrasado, obscuro e sangrento do imperialismo europeu de todos os tempos. Nossos países não conheceram o iluminismo, nem o direito humanitário, e as influências da Revolução Francesa foram “adaptadas” para favorecer as classes dominantes republicanas, que não eram mais esclarecidas que as do Império.
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Os fatos mais específicos confirmam isso amplamente. O Tribunal de Justiça de São Paulo fraudou o veredicto do Conselho de Sentença, no caso do carniceiro-mor de Carandiru, aduzindo razões ridículas. Numerosos agentes de Estado foram descriminalizados por atos contra civis, e até receberam parabéns e “reparações”, como o jovem promotor que assassinou um rapaz desarmado com 12 tiros numa praia, por um absurdo surto de ciúmes. Infratores por roubos insignificantes foram condenados, em número incalculável, com penas draconianas, como o da menina deficiente que esteve presa vários anos por furtar um shampoo, que foi torturada na prisão e perdeu um olho, caso relatado pela jornalista Tatiana Merlino, que recebeu por isso o prêmio Vladimir Herzog de 2009. Isso sem falar das incontáveis mortes de moradores de rua, dos assassinatos e das torturas de habitantes da Febem e dos prêmios concedidos aos esquadrões da morte oficiais. Enfim, não há uma única barbárie que esteja fora da agenda da escravocracia do Opus Dei, e dos demais violadores de direitos humanos instalados no estado de São Paulo.
Para quem não se lembra do detalhe, o Opus Dei foi escolhido (no final dos anos 40) como doutrina básica do fascismo espanhol. Isso porque o franquismo entendeu que o fascismo tradicional de José Antonio Primo de Rivera e Orbaneja, chamado de “Falangismo”, era brando demais para o nível de sangue que as elites espanholas reclamavam.
No julgamento dos autores da chacina do Carandiru houve uma fraude incrível. Um obscuro político que atuava como defensor da polícia tentou influenciar o Conselho de Sentença com um ato absolutamente ilegal como levar seus membros a percorrer a prisão de Carandiru após o massacre. Contrariamente a seus propósitos, o júri votou contra os algozes, pois o sórdido experimento repugnou os membros do Conselho.
Por outro lado, há também razões genéricas para temer que as punições aplicadas aos atores do democídio do Carandiru (se houver alguma) sejam subdimensionadas.
Primeiro, embora muitos tentem enganar a opinião pública, hoje ninguém ignora que os crimes do terrorismo de Estado não são crimes políticos (no sentido de crimes contra o despotismo), nem são crimes comuns (como assalto, roubo, briga, etc.) O terror de Estado produz crimes contra a humanidade, algo que foi enunciado explicitamente em Nuremberg, há 65 anos. Parece, porém que esse tempo foi insuficiente para que nossos juristas tomassem conhecimento.
Crimes de enorme potencial destrutivo e reprodutivo, dirigidos contra a condição humana em seu conjunto, não devem ser julgados por tribunais comuns, muito menos quando esses tribunais têm um passado de conivência com os autores.
Segundo, a idéia de que os poderes públicos são independentes uns dos outros, num continente eivado por todo tipo de cambalacho, é algo que nem os mais desinformados engolem. Salvo uma pequena e corajosa minoria (Juízes para a Democracia, por exemplo, ou grupos reduzidos de procuradores), os agentes jurídicos estimulam a violência policial, pois ela é a que enche as prisões, aumentando a aparência de bom desempenho do aparato repressivo (quanto mais presos, melhor), das iniquidades do sistema jurídico-prisional e fazendo as delícias do público fascista, herdeiro do Integralismo. Além de encobrir democidas e torturas, alguns magistrados presenciam os tormentos e estabelecem limites para que o torturado não morra antes da confissão.
Terceiro, e finalmente, é difícil que os crimes contra a humanidade possam ser julgados pelos próprios países em que se cometem. O Estado julgando o Estado é um sarcasmo contra o senso de justiça. Qual júri permitiria entre seus membros o próprio réu?
Tenho ouvido muitas referências elogiosas à Justiça argentina por ter conseguido julgar 200 militares, policiais e criminosos civis a eles vinculados, da última ditadura. Sem dúvida, a Justiça atuou dignamente, comparada com qualquer outra do continente, mas ela não poderia ter feito isso (que, aliás, representa pouco mais de 2% do total de assassinos a serviço do Estado que cometeram crimes atrozes) sem a enorme pressão interna no país (300 mil familiares de desaparecidos que militaram durante 30 anos, e continuam militando, por esse julgamento), além da pressão de governos de países democráticos que tinham cidadãos assassinados pela ditadura.
Observemos que, há três anos, o STF protegeu os autores de torturas e democídio de mais de um milhar de vítimas brasileiras nos 21 anos da ditadura militar. Se usarmos esse padrão como referência, podemos pensar que o Judiciário não se pronunciará em favor de vítimas que foram empurradas ao crime por uma sociedade classista, racista e escravocrata, e que depois foram assassinados para dar pão e circo aos linchadores de classe média e alta. Muitas das vítimas da ditadura eram universitários ou profissionais com nível de educação superior, o que, para a mentalidade preconceituosa das elites, é sempre um fator atenuante.
É verdade que o caso Carandiru foi julgado pela OEA, mas esta escolheu uma solução discutível. Aceitou não punir o Brasil desde que o Estado melhorasse a condição das prisões. A priori, essa negociação poderia ser razoável, tendo em conta que o objetivo de uma ação deve ser melhorar o estado de coisas e não simplesmente punir. Mas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA sabia que carecia de poder para monitorar o cumprimento dessa promessa, que, obviamente, não se cumpriu!
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