Por João Aires*
Precisamos falar da ADI 6870/DF, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra dois dispositivos da Lei Complementar Distrital 828/2010, que regula a prestação de assistência judiciária no Distrito Federal.
Os dois dispositivos atribuem ao Defensor Público-Geral e aos Defensores Públicos do DF o poder de requisitar documentos, informações e providências necessárias à atuação da DPDF de agentes, órgãos e entidades da Administração Pública Direta e Indireta, incluindo subsidiárias e prestadoras de serviços públicos.
A PGR sustenta que os dispositivos conferem à carreira da DPDF uma prerrogativa que os advogados privados não detêm, o que, portanto, afrontaria os princípios da isonomia, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e do devido processo legal. Como paradigma, apresentou o acórdão da ADI 230/RJ, que declarou a inconstitucionalidade do poder de requisição na DPE-RJ previsto na Constituição do Estado do RJ. A ementa do acórdão em questão defende a ideia de “exacerbação das prerrogativas asseguradas aos demais advogados”.
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O julgamento, que começou na última sexta-feira (12) em julgamento no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Semelhanças e diferenças entre Defensoria Pública e Advocacia
É inegável que existem similaridades entre as funções da Defensoria Pública e da Advocacia, ambas exercem atividades de orientação e de postulação jurídica ao Poder Judiciário e à Administração Pública.
Há também diferenças substanciais entre os regimes jurídicos de seus membros. A carreira da Defensoria Pública está sujeita a um regime próprio, à fiscalização disciplinar própria, à necessidade de aprovação prévia em concurso público, à desnecessidade de apresentação de mandato para sua atuação e à desnecessidade de inscrição na OAB.
A desnecessidade de inscrição na OAB foi objeto da ADI 4636/DF, em que a ampla maioria do Tribunal reconheceu sua constitucionalidade, declarando inconstitucional qualquer interpretação que resulte no condicionamento da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública à inscrição de seus membros na Ordem dos Advogados do Brasil.
Por ocasião desse julgamento, foram assinaladas algumas das particularidades da atuação de um advogado particular e a de um Defensor Público, destacando-se que as funções institucionais e as prerrogativas da Defensoria Pública são previstas sempre em benefício dos assistidos, e não dos membros da Instituição.
Poder de requisição e a proteção dos direitos dos mais vulneráveis
De fato, o poder de requisição é essencial para viabilizar o acesso a documentos e informações necessárias para garantir a proteção dos direitos dos necessitados, já que o gigantesco volume de trabalho e a histórica deficiência estrutural não permitem que os Defensores Públicos tenham condições de proporcionar aos vulneráveis as mesmas condições de advogados particulares.
Isso porque o Defensor Público não possui condições de realizar pessoalmente as diligências probatórias que antecedem a orientação jurídica e a eventual propositura da ação, de modo que o hipossuficiente, com problemas financeiros, muitas vezes, impossibilitado de deixar o trabalho e com limitado ou inexistente conhecimento jurídico, acabava sendo obrigado a buscar sozinho todas as provas necessárias à promoção e defesa de seus direitos.
Um Defensor Público para milhares de cidadãos
Por falar em deficiência estrutural, no caso do DF, a Defensoria Pública possui 239 membros e 600 servidores, ao passo em que MPDFT e TJDFT possuem 382 membros e 2.102 e 7.240 servidores, respectivamente. Essa disparidade é um espelho da insuficiência orçamentária. No DF, a Defensoria Pública conta com menos de 1/3 do orçamento do MPDFT e menos de 1/10 do orçamento do TJDFT.
Ainda em 2014, o IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, elaborado pelo Ministério da Justiça, apontou a razão de haver um Defensor Público para cada 4.737 pessoas hipossuficientes no DF.
Pela Pesquisa Distrital de Amostra por Domicílios elaborada pela Codeplan em 2018, 66,7% dos domicílios do DF se enquadram nos critérios de atendimento da DPDF, de até 5 salários mínimos, de modo que 77,5% dos moradores do DF são potenciais usuários dos serviços da DPDF. Se considerarmos a estimativa da população do DF em 2.304.850 pessoas, temos um Defensor Público para cada 9.643 potenciais usuários.
Mesmo assim, a DPDF consegue se fazer presente em mais de 90% das unidades jurisdicionais do DF, ainda que, em muitos casos, onde atuam apenas um Juiz e um Promotor, existe a necessidade de atuação de dois Defensores, por ambos os polos da relação processual.
Poder de requisição e a desburocratização da Justiça
Na medida em que o poder de requisição é essencial para a adequada instrução preparatória da ação, ela coopera com uma prestação jurisdicional mais célere, justa e efetiva, já que retira tal ônus do juiz e evita a proliferação de processos judiciais apenas com o objetivo de obtenção de documentos e informações. A prerrogativa também é essencial para viabilizar a promoção prioritária da solução extrajudicial dos litígios, uma das funções institucionais da Defensoria Pública.
Apenas no ano de 2020, a DPDF expediu cerca de 14.000 ofícios com base no poder de requisição. Em 2021, até agosto, já foram cerca de 12.000 ofícios. Com o poder de requisição e o foco na solução extrajudicial dos litígios, foram milhares de audiências e de acordos extrajudiciais, tanto em 2020 quanto em 2021.
Com o fim dessa prerrogativa, os defensores públicos do DF terão que acionar o poder Judiciário para, com base na previsão do artigo 381 do Código de Processo Civil/2015 da produção antecipada de provas, solicitar tal produção, uma vez que a prova é suscetível de viabilizar autocomposição e também porque o prévio conhecimento dos fatos pode justificar ou evitar o ajuizamento de ação.
No âmbito coletivo, a prerrogativa é igualmente essencial para a preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da ação coletiva.
No DF, apenas em razão da pandemia, a Defensoria Pública apresentou mais de 100 medidas de tutela coletiva, incluindo 19 ações civis públicas, dois Habeas Corpus Coletivos, 18 Recomendações, 2 Termos de Ajustamento de Conduta, dentre outras medidas balizadas pelo poder de requisição.
Como a Lei nº 7347/1985 confere o poder de requisição ao MP, deve ser assegurada a mesma prerrogativa à Defensoria Pública para preservar a paridade funcional entre as instituições públicas responsáveis pela tutela de direitos transindividuais.
Aliás, a Emenda Constitucional 80/2014 reconheceu a Defensoria Pública como instituição responsável pela promoção dos direitos humanos e pela defesa dos direitos coletivos dos necessitados. A mesma Emenda Constitucional, inclusive, separou Defensoria Pública e Advocacia em Seções diferentes, o que reforça a tese de desigualação jurídica entre seus membros.
A desigualação, que é originária da Constituição Federal de 1988, também vem sendo reconhecida e reafirmada pela legislação infraconstitucional, a exemplo dos poderes de promover Ação Civil Pública (ACP) e todas as espécies de ações para propiciar a adequada tutela dos direitos transindividuais de pessoas hipossuficientes (Lei Complementar 132/2009), da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis (Lei Complementar 132), inclusive como custus vulnerabilis (STJ), de atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, de participar de conselhos federais, estaduais e municipais afetos às funções institucionais, de atuar em ação possessória em que figure no pólo passivo grande número de pessoas em situação de hipossuficiência econômica (CPC/2015), de atuar em incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas (CPC/2015), de velar pela regular execução da pena e da medida de segurança como órgão de execução penal (Lei 12.312/2010), dentre outros exemplos.
Também é importante anotar que o Ministério Público, na Lei 8625/1993, e a Advocacia-Geral da União, na Lei 9028/1995, também possuem a prerrogativa do poder de requisição.
Existe tratamento diferenciado entre Fazenda Pública, Ministério Público e Defensoria Pública da advocacia privada, como forma de salvaguardar, justamente, a isonomia, caso da intimação pessoal e do prazo em dobro, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF.
A prerrogativa também passa pelo crivo da proporcionalidade, porque é adequada ao fim de garantir o direito de acesso à justiça com paridade de armas e garantir serviço público de qualidade à população de baixa renda, necessária pelo reduzido número de Defensores para atender elevada demanda, o que dificulta o desempenho de diligências pessoais externas e atuação judicial com a mesma dedicação possível da advocacia privada, e é proporcional em sentido estrito porque os benefícios alcançados superam os ônus causados.
Assim, a prerrogativa do poder de requisição é um meio de garantir a paridade de armas, não de violá-la. Como ato administrativo que é, está sujeita ao permanente controle jurisdicional e não vai de encontro às hipóteses de reserva constitucional de jurisdição.
Então, por tudo que foi dito, o entendimento firmado na ADI 230/RJ, que foi ajuizada em abril de 1990 e julgada em fevereiro de 2010, deve ser superado, de modo a ser reconhecida a constitucionalidade dos dispositivos. O poder de requisição não é um superpoder, mas uma prerrogativa básica para garantir acesso à Justiça a quem mais precisa.
* É subdefensor Público-Geral do DF
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