Muitas pessoas ficaram surpresas pelo prêmio Nobel dado a Bob Dylan. Para os que cultuam o “mistério” das letras, a surpresa veio acompanhada de indignação: deram o Nobel de Literatura a um músico! Um jornalista disse que, em vez de ver a obra do premiado nos livros, como sempre aconteceu, agora vamos ter que acionar os recursos de streaming.
Os indignados se dividem em dois grupos. Uns acham que a Academia da Suécia fez um “truque” mercadológico. Os mais “cultos” afirmam que o legado Nobel, que eles acham sagrado, está sendo profanado pela honraria dada a um cantor popular.
O único argumento esgrimido pelos críticos é que Dylan é músico, aliás, o único músico que recebeu um Nobel de Literatura. Eles parecem pensar que ambas as profissões são incompatíveis, ou, então, que a literatura perde sua “essência” e evapora quando é veiculada por som.
Vale a pena gastar um pouco de tempo em pensar o seguinte: o valor de estar escrito ou impresso em papel, ou, para os mais tolerantes, reproduzido como texto em dispositivos magnéticos é, sobretudo, um assunto da psicologia perceptiva do leitor e não de conteúdo literário.
Com efeito: se houver boa luz, um texto escrito possui mínimas perturbações físicas e pode ser “executado” por um tempo virtualmente infinito. É só abrir o livro na página certa e deixar aí até você cansar de ler quantas vezes quiser. Ou, então, abri-lo num programa leitor de texto ou num navegador (ou coisa que o valha) e contemplá-lo até que acabe a bateria, cortem a luz ou seu dispositivo estrague.
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Já um texto lido ou cantado pode sofrer ruído, mesmo que seja ouvido da boca do leitor sem gravação intermédia. Aliás, se você não gravar para repetir quantas vezes quiser, a “execução” de um som é praticamente pontual. É só pensar. Para um luso falante alfabetizado que sabe “algo” de inglês, que será mais fácil: ouvir o recitado de um conto, ou ler o conto em papel ou na tela?
No caso do livro impresso, também está o valor estético da impressão e da encadernação, que, pessoalmente acho muito importante, e, às vezes, é o único bom em alguns livros.
A diferença entre escrito e falado/cantado não tem nada a ver com o conteúdo, a sintaxe, a qualidade do léxico, nem a informação. Tem a ver com a clareza, o sotaque e a articulação do falante. Pode variar, também, a capacidade de suscitar emoção. Alguém pode imaginar Eleanor Rigby na voz de um típico cantor de tangos? (Devem existir, acredito, cantores de tango que gostam de beat e balada, mas estou falando do caso típico).
Mas, então, também é necessário lembrar que, da época dos aedos (trovadores gregos há três mil anos), poemas, epopeias, contos e, muito depois, novelas e romances, foram objeto de recitação. Mesmo hoje, escritores leem suas produções nos festivais literários.
Se quisermos fazer uma crítica lícita à Comissão de Literatura da Fundação Nobel, que não abunda tanto em abusos como outras seções (por exemplo, Paz e Economia), deveríamos dizer que seu grande erro foi não ter dado o Nobel de Literatura a outros autores de baladas. Entre eles, o nosso Chico Buarque e, sem dúvida, McCartney e o falecido Lennon. Apesar de sua comovedora criatividade musical e impacto vocal, Joan Baez poderia ser mais questionada que Dylan se tivesse recebido o prêmio, já que sua produção escrita (letras e não música) é menor que a de seu velho amigo. Mesmo assim, não ousaria dizer que ela não mereceria.
Dylan é o primeiro músico-poeta que recebe o famoso prêmio. Ora, quem acha que essa mistura entre poesia e música não é legal pode resolver o impasse de maneira fácil. Pegue a lírica de uma composição qualquer, seja, por exemplo, Highlands, e esqueça a música.
Os que acham que existem critérios totalmente objetivos na arte nos devem, então, uma resposta: quais são os deméritos destas e outras poesias de Dylan? Será que há muita diferença com outros Nobel, como Yeats, ou alguém mais recente, como Czesław Miłosz?
Como sabemos se Dylan produziu literatura que mereça o Nobel? As grandes polêmicas por “erros” no Nobel de literatura foram poucas. Foi dado ao filósofo Henri Bergson em 1927, por suas criativas (leia-se “obscuras”) propostas, mas foi negado ao novelista Máximo Gorki nesse mesmo ano, por ser um defensor das classes populares. Foi conferido a Churchill, a Mauriac e alguns outros por razões políticas. Não incluo Pastiernak nem Solkhenhitsin, porque, embora possam ter existido razões políticas, as obras tinham valor humanitário. Estar contra o stalinismo e o Gulag, unido ao valor narrativo, seria mérito suficiente.
Os valores artísticos são, inicialmente, subjetivos. Podem adquirir alguma objetividade, considerando o consenso dentro de certos paradigmas. Acredito que, para o paradigma dos leitores de Paulo Coelho, deve ser unânime a opinião de que Shakespeare é autor de pornografia (pior ainda, sem imagens) e que Lev Tolstoi era um chato, cujos escritos nem se comparam aos roteiros do seriado 24 Horas.
(Estaria de acordo se comparassem Tolstoi ou qualquer outro com o maravilhoso seriado Murdoch Mysteries)
Uma mínima objetividade parcial pode conseguir-se analisando certos traços técnicos na produção literária: transparência da linguagem, riqueza de simbologia, coerência entre os diversos fragmentos, profundidade ou relevância humana dos problemas abordados, etc.
Finalmente, cabe perguntar-se por que tanto alvoroço contra Dylan, especialmente num país em que magistrados confundem (Friedrich) Engels com (George) Hegel, e o STF traduz, em alguns dos autos da Justiça estrangeira, a palavra reato (em italiano, crime) por “reação”! Quantos especialistas em literatura comparada tem o país e quantos órgãos veiculam sua produção?
Cabe perguntar quais são as principais diferenças (mesmo subjetivas), entre a qualidade poética de Dylan e a de Tagore, Sully Prudhomme (não é o Proudhon anarquista, gente!), Jensen, Gabriela Mistral, Frédéric Mistral, Bjørson, Carducci, Yeats, Shaw, Eliot, Giménez e outros 72 que também receberam o prezado prêmio e, além disso, escreveram abundante poesia.
É provável que exista, sim, essa diferença de qualidade, mas também pode existir entre os outros laureados. Uma indignação tão grande e insólita exigia uma explicação.
É bom lembrar que, teoricamente, o prêmio Nobel visa premiar, além do talento e das descobertas, também o sentimento humanitário que pode existir ou não nesse talento. Pode arguir-se que esse princípio foi violado de maneira estrondosa com numerosos prêmios da Paz e da Economia. Mas não é justo queixar-se de que, algumas vezes, a Academia cumpra suas promessas.
Por exemplo, o prêmio para Jorge Luis Borges, pedido durante décadas por seus numerosos fãs no mundo todo, foi rejeitado por causa do apoio do escritor aos crimes das ditaduras argentinas, e seu aplauso a tudo o que foi golpe em seu país. A Academia nunca discutiu o valor literário.
De maneira inversa, o valor humano e pacifista dos poemas de Dylan seria suficiente para outorgar-lhe o prêmio. Pessoalmente, acredito que Dylan tem méritos literários em abundância, além dos méritos sociais. Se assim não fosse, alguns intelectuais furibundos diriam que, com esse critério, deveria dar-se o prêmio Nobel a qualquer autor de pichações.
A polêmica criada pode parecer melindre intelectual, porém, acho que intelectuais conservadores (mesmo marginalizados pelo poder, que prefere balas a ideias) querem contemporizar com nosso novo período de trevas.
Hoje, o Brasil passa pelo pior momento cultural, educativo e mental sofrido nas Américas nos últimos 30 anos. As atuais figuras públicas (inclusive as marionetes nomeadas nas áreas humanitárias) são deploráveis. Seria ingênuo pensar que esta desusada polêmica tem uma base cultural. Dylan é muito similar a Chico Buarque, que é um velho alvo do pior obscurantismo brasileiro.
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