Quem conhece o viés conservador/reacionário dos jornalões brasileiros, não se surpreendeu com a defesa incondicional que os três principais (O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo e O Globo) fizeram da indefensável anistia de 1979, cuja revisão acaba de ser recomendada por alguns integrantes da Comissão Nacional da Verdade e por dois ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ao defenderem-na, tais tentáculos da indústria cultural omitem que ela não passou de um mostrengo jurídico, a mera imposição da lei do mais forte sobre uma oposição expurgada (por frequentes cassações dos mandatos de seus parlamentares) e chantageada (a libertação de centenas de presos políticos e a permissão de volta dos exilados dependiam de sua anuência a tal grotesquerie).
Assim como a presidenta Dilma Rousseff, entoam em uníssono a cantilena do respeito aos “pactos e acordos que levaram o país à redemocratização”, sem jamais esclarecerem que o pacto se deu entre Fausto e Mefistófeles, e que o acordo foi selado por quem mantinha reféns com quem ansiava por vê-los livres.
A ONU, a OEA e o direito internacional desconsideram quaisquer simulacros de anistias gestados em plena vigência do arbítrio, com o objetivo de fornecerem uma espécie de habeas corpus preventivo para agentes do Estado que estupraram os direitos humanos (e para os seus mandantes).
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Também não causa surpresa nenhuma o fato de que, dos três, seja o mais envolvido com as atrocidades da ditadura quem mais se esforce para desacreditar o relatório final da CNV.
Assim, em editorial de 12 de dezembro, Página virada, a Folha sustentou uma tese das mais estapafúrdias e ofensivas para os brasileiros, qual seja a de que o axiomático para os países civilizados não vige nestes tristes trópicos:
“Não é sensato nem desejável que compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, determinando que a tortura é crime imprescritível, possam sobrepor-se à soberania jurídica nacional quando se trata das próprias fundações do Estado de Direito entre nós”.
Ou seja, o editorialista quis fazer-nos crer que apurarmos a responsabilidade por crimes hediondos e punirmos os culpados abalaria as “próprias fundações do Estado de Direito entre nós”. Quem mais estaremos impedidos de submeter à Justiça? Os grandes traficantes? Os exploradores da pornografia infantil? Os assassinos seriais?
Será que este disparate provém do mesmo profissional que, em 17 de fevereiro de 2009, qualificou de ditabranda o despotismo vigente no Brasil entre 1964 e 1985?
Para que a Folha do último dia 12 tivesse jeitão de sexta-feira 13, não poderia faltar a contribuição do Vlad Dracul do colunismo político, Reinaldo Azevedo. Em Comissão Nacional da Farsa, ele repetiu a falácia predileta dos ogros da ditadura e dos cuervos por eles criados, a de que algozes e vítimas são equiparáveis:
“Os assassinatos cometidos por terroristas não ocuparam o tempo dos donos da verdade. Segundo eles, são 434 os mortos e desaparecidos. As 120 pessoas eliminadas pelo terrorismo viraram esqueletos descarnados também de memória”.
Quais terroristas, cara pálida? Os inventados nos anos de chumbo pelos serviços de Guerra Psicológica das Forças Armadas, ao aplicarem um rótulo descabido a quem justificadamente pegou em armas contra uma ditadura?
Tratou-se de uma ignominiosa manipulação, que visava a efeitos meramente propagandísticos. Até as pedras sabem que os resistentes jamais pretenderam insuflar o terror, mas sim libertar o País de tiranos –os quais, eles sim, recorreram desmedidamente ao terrorismo (de estado) para manter o povo brasileiro amedrontado e subjugado.
Vale repetir: a resistência à tirania é um direito inalienável dos cidadãos, que remonta à Antiguidade e hoje ninguém mais contesta no mundo civilizado. Então, não é o caso de, simplesmente, compararmos atos de violência com outros atos de violência, como se fossem grandezas equivalentes.
A violência perpetrada por agentes do Estado, visando à perpetuação de um governo ilegítimo (pois resultante de uma quartelada), tem uma caracterização jurídica diametralmente oposta à da violência praticada por civis que, em condições de extrema inferioridade de forças, resistiam a tal despotismo.
Ademais, a violência dos agentes do Estado foi relevada, estimulada e acobertada, permanecendo impune até hoje, enquanto a violência dos resistentes já foi punida nos anos de chumbo –da forma mais arbitrária e com rigor extremo, quase sempre descambando para a bestialidade.
RA deveria estar-se mirando no espelho, quando escreveu que “esse relatório é um lixo moral”…
Por último, é elogiável que a Folha de 15 de dezembro, ao dar voz aos familiares de vítimas da esquerda, tenha apresentado os dois lados do caso do empresário Henning Albert Boilesen:
– compreensível desabafo do filho (segundo quem se tratava de “um pai de família que, certo dia, despediu-se da mulher, saiu para trabalhar e levou 25 tiros na cabeça de terroristas de esquerda”);
– e também a informação de que “o relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma que Boilesen era um empresário que arrecadava recursos para o aparato de repressão e que chegou a importar um aparelho de choques e a assistir a sessões de tortura”.
Poderia explicar melhor, claro. Boilesen não foi um financiador da repressão qualquer, mas sim o principal deles. Ao criarem a Operação Bandeirantes, as Forças Armadas não assumiram de imediato a paternidade do monstro, deixando que permanecesse durante o segundo semestre inteiro de 1969 na semiclandestinidade: não tinha existência legal, mas mandava mais do que o Deops, ao qual institucionalmente competia a repressão aos subversivos.
Então, foi uma vaquinha organizada por Boilesen junto a seus amigos (empresários fascistas) que bancou o funcionamento da Oban, pois, naquele tempo, era menos usual o desvio de recursos orçamentários para outras finalidades. Esta situação persistiu até 1970, quando os militares instituíram o DOI-Codi (que absorveu a Oban, legalizando-a…).
E foi também graças aos esforços de Boilesen que os órgãos de repressão passaram a contar com generosas doações para premiarem os torturadores que capturassem ou matassem os membros da resistência. Havia até uma tabelinha de preços por cabeça, à maneira dos cartazes de procurado vivo ou morto que vemos nos filmes de faroeste.
Qual movimento de resistência de qualquer país e de qualquer época que não justiçaria alguém como Boilesen, o homem que alimentava e açulava os pitbulls responsáveis por tantas mortes e torturas de seus quadros?
De qualquer forma, a Folha pelo menos fez constar, ainda que sucintamente, o outro lado referente ao Boilesen. Só esqueceu do outro lado referente a si própria, pois, no mesmíssimo capítulo referente ao Boilesen, o relatório final da CNV também a cita:
“Ficou conhecido o banquete organizado pelo ministro Delfim Netto no Clube São Paulo, antiga residência da senhora Viridiana Prado, durante o qual cada banqueiro, como Amador Aguiar (Bradesco) e Gastão Eduardo de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), entre outros, doou o montante de 110 mil dólares para reforçar o caixa da Oban.
Ao lado dos banqueiros, diversas multinacionais financiaram a formação da Oban, como os grupos Ultra, Ford, General Motors, Camargo Corrêa, Objetivo e Folha (grifo meu)”.
E, mais adiante:
“…a pesquisadora Beatriz Kushnir constatou a presença ativa do Grupo Folha no apoio à Oban, seja no apoio editorial explícito no noticiário do jornal Folha da Tarde, seja no uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime”.
Vale lembrar, ainda, que a Folha foi o grande jornal mais tímido no repúdio ao sórdido papel histórico que desempenhara nos anos de chumbo.
A família proprietária do Estadão jamais escondeu sua participação no golpe de 1964, mas se distanciou dos militares quando estes descumpriram a promessa de devolver o poder saneado aos civis e, ao invés disto, radicalizaram a ditadura. A partir de então, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde mantiveram postura exemplar, denunciando o arbítrio e se tornando alvos preferenciais da censura.
Os Mesquitas mostraram até coragem pessoal em algumas situações, como quando orientaram os seguranças da casa a impedirem que os agentes do DOI-Codi sequestrassem um jornalista no ambiente de trabalho (o dito cujo acabou saindo do prédio no porta-malas do carro do patrão e sendo oculto no sítio do mesmo).
O Globo só deu a mão à palmatória em 31 de agosto de 2013 , mas, pelo menos, o fez ostensivamente.
Já a Folha, torcendo para que passasse o mais despercebido possível, inseriu este texto num caderno comemorativo do seu 90º aniversário, acrescentado à edição de 19 de fevereiro de 2011, mas como álibi para quando alguém a acusasse de jamais ter feito a indispensável autocrítica.
Passaria despercebido em meio ao auê louvaminhas para si própria, caso a ombudsman não tivesse aludido a ele na sua coluna dominical, frustrando a matreirice. Eis o que o jornal sorrateiramente admitiu, entre outros pecados:
“…A partir de 1969, a ‘Folha da Tarde’ alinhou-se ao esquema de repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações militares.
A entrega da Redação da ‘Folha da Tarde’ a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da Ação Libertadora Nacional, de Carlos Marighella…
…Segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usados por agentes da repressão, para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros. A direção da Folha sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins”.
A última frase é daquelas que outrora, despertariam o comentário “acredite quem quiser!”…
Então, faz todo sentido que a Folha, mais de quatro décadas depois, continue tentando relativizar o que não passou de mais um capítulo da eterna luta da civilização contra a barbárie. Como então se alinhou com os bárbaros, está pisando em ovos até agora.
Mas, abstendo-se de informar aos seus leitores que nesta questão não é parte isenta, mas sim interessada, deveria ao menos ser um pouquinho mais discreta. Está dando na vista.
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