Ricardo Prado Pires de Campos*
A PEC 5 de 2021 já teve seu substitutivo rejeitado pelo Congresso Nacional, não obteve votação suficiente para ser aprovada, pois, uma emenda constitucional exige quórum qualificado. Todavia, como o número de votos faltantes não foi muito grande, os defensores do projeto querem buscar uma segunda votação através do projeto original.
A questão já é polêmica porque a proposta original da PEC sequer pode ser submetida novamente à votação na mesma sessão legislativa, dado que o § 5º do artigo 60 da Constituição Federal veda essa possibilidade: “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. E embora possam querer dizer que a proposta é diferente e, portanto, pode ser votada, cabe observar que ela trata exatamente dos mesmos temas rejeitados: ampliação de membros no CNMP e indicação do Corregedor do MP pelo poder político. As propostas são diferentes no detalhe, não em seus aspectos principais. De forma que a vedação de nova votação na mesma sessão legislativa está muito clara.
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No entanto, não é apenas essa a inconstitucionalidade, elas são mais amplas e abrangem o mérito da proposta. Aliás, a PEC já deveria ter seu andamento obstado na Comissão de Constituição e Justiça, pois, não preenche às exigências constitucionais.
O CNMP, forma como é chamado o Conselho Nacional do Ministério Público, está previsto no artigo 130-A da Constituição Federal integra a seção I do Ministério Público, parte do Capítulo IV que cuida das funções essenciais à Justiça. Ou seja, o CNMP é órgão do Ministério Público e não do Poder Legislativo, de forma que qualquer proposta que pretenda dar ao Legislativo e não ao MP o controle do órgão, esbarra em obstáculo inconstitucional intransponível (cláusula pétrea), pois, implicaria em mudança nas competências dos Poderes, na divisão dos Poderes.
O § 4º do art.60 da Constituição Federal, que trata exatamente “Da Emenda à Constituição” diz claramente que: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III. a separação dos Poderes; IV. Os direitos e garantias individuais”.
A Constituição Federal trata em Capítulos distintos cada um dos Poderes, não há como confundir. No título IV que cuida “Da Organização dos Poderes”, o capítulo I trata do “Do Poder Legislativo”; no Capítulo II “Do Poder Executivo”; no Capítulo III “Do Poder Judiciário”; e pasmem, há o Capítulo IV, e último, consagrado às “Funções Essenciais à Justiça”. Neste capítulo, em quatro seções, aparecem: o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia e a Defensoria Pública. Ou seja, a Constituição Federal reconhece que ao lado dos três Poderes há algumas instituições que prestam serviços essenciais para a Justiça e merecem tratamento diferenciado. Ao Ministério Público incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art.127); enquanto à Defensoria Pública cabe “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (art.134).
Dessas quatro instituições, apenas a Advocacia Pública é vinculada expressamente a um dos Poderes, pois, o texto constitucional registra que a Advocacia-Geral da União compete “as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo” (art.131). Finalmente, a Advocacia, por ser de natureza privada, não integra nenhum dos três poderes (art.133).
Isso leva a conclusão absolutamente clara de que o Ministério Público não integra o Poder Legislativo e, portanto, não pode ser gerenciado, nem administrado pelo Poder Legislativo, e esse é inquestionavelmente o objetivo da PEC 5, de 2021.
Além disso, Ministério Público e Defensoria Pública foram instituídos como guardiães dos direitos fundamentais da Constituição, inclusive contra abusos do próprio Estado. Ao Ministério Público compete defender, dentre outros, os “interesses sociais e individuais indisponíveis” (art.127) e a Defensoria compete “a promoção dos direitos humanos e a defesa, … dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (art.134).
Ou seja, essas instituições foram criadas para garantir às pessoas, garantir aos cidadãos, contra desmandos de toda sorte, inclusive contra atos ilegais e abusivos do próprio Estado e de seus agentes. Essas instituições fazem parte do sistema de garantias contra abuso de direitos. São parte fundamental das cláusulas pétreas da Constituição. Vale repetir o mencionado dispositivo constitucional:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III. a separação dos Poderes; IV. Os direitos e garantias individuais” (§ 4º do art.60 da Constituição Federal, destaquei). Ora, Ministério Público e Defensoria Pública fazem parte do complexo sistema constitucional estabelecido para assegurar direitos e garantir o seu exercício e a impossibilidade de abolição ou supressão pelo Estado e seus agentes.
Pois bem, o Estado está impossibilitado de abolir o Ministério Público e a Defensoria Pública. E a PEC 5 de 2021, sob o falso argumento de aperfeiçoamento da instituição, está querendo suprimir o cerne do Ministério Público, ou seja, sua autonomia institucional e a independência funcional de seus membros. Ministério Público sem essas duas garantias não é Ministério Público, não terá condições de exercer as grandiosas competências e responsabilidades que o texto constitucional lhe atribui.
De forma que, a PEC 5 de 2021 padece de inúmeras inconstitucionalidades porque visa quebrar a espinha dorsal do Ministério Público sujeitando-o ao Poder Político, em especial ao Poder Legislativo. É óbvio que isso é projeto pessoal de alguns parlamentares que estão tentando cooptar os demais para seu projeto de poder. Atitude típica de tentativa de concentração de poderes, mecanismo reiteradamente proibido e combatido pelo texto da Constituição.
Assim, não resta dúvida que o projeto de Emenda Constitucional não visa qualquer aperfeiçoamento do Ministério Público, dado que não faz qualquer exigência nova para a Instituição, não cobra novo patamar de serviços de seus membros, mas apenas inclui mais conselheiro(s) indicado pelo Legislativo, num movimento típico de concentração de poderes, e transfere, também para o Legislativo, o direito de escolher o Corregedor-Geral do Ministério Público. Ou seja, retira prerrogativas do MP para transferi-las ao Parlamento.
Esvaziando os poderes do Ministério Público para aumentar o controle institucional pelo Legislativo, há nítida subtração de poderes ministeriais, inviabilizando que a instituição possa fazer a defesa do patrimônio público e de outros interesses coletivos e individuais indisponíveis, como os direitos das populações indígenas, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, os direitos da infância e juventude, dos idosos, dos consumidores e muitos outros.
O combate aos interesses escusos dos poderosos, política e economicamente, deixarão de ser realizados quando o Ministério Público for subjugado por interesses não republicanos.
A PEC 5 de 2021 não representa interesses da sociedade brasileira, não representa interesses do povo brasileiro, não representa os interesses da sociedade civil ou de suas organizações, e, também, não representa os interesses das próprias instituições do Estado. Nem o Legislativo, nem o Ministério Público, nem a Justiça, ganharão com a aprovação dessa PEC. O ganho será de apenas poucas pessoas que não cumprem a lei, e não querem ser cobradas em seus desvios de conduta.
*Ricardo Prado Pires de Campos é professor e mestre em Direito Processual Penal, foi promotor e procurador de Justiça de 1984 a 2019, e atualmente exerce a presidência do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático, associação de membros do Ministério Público brasileiro.
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