Bajonas Teixeira de Brito Junior *
O Instituto Lula amanheceu cercado por homens em uniformes camuflados. Fantasiou-se, com trajes militares de guerra, policiais designados para exercer coação física sobre um ex-presidente pacífico e democraticamente eleito duas vezes. Onde já se viu isso? Quem assistiu aos golpes militares da década de 70 na América Latina compreende o significado tétrico dessa indumentária. Ela foi escolhida para conferir certo simbolismo ao ato e intimidar qualquer resistência. Ou seja, para infundir terror psicológico e paralisar possíveis oponentes, em especial a militância do PT. E também para expressar a fantasia da parte fascista da classe média, com seus vivas à PM e seus pedidos histéricos de golpe militar.
O uniforme camuflado é certamente um ultraje à democracia, mas em verdade um traje a rigor para o tão almejado grandfinale, expressão adotada ontem em uma análise da Folha/UOL. Este grandfinale seria o tiro de misericórdia na incipiente democracia social que o Brasil viveu na última década. Por isso, vale a pena ver como alguns “erros” da Justiça e da polícia aplainaram o terreno para essa apoteose.
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Foram três “erros” muito instrutivos sobre como se dá a investigação em torno de Lula e como se vem preparando isso que foi desencadeado agora, sua condução coercitiva para depor na PF. O primeiro desses “erros”, em 10 de fevereiro, foi a divulgação de um despacho sigiloso do juiz Sérgio Moro. Eis o resumo da ópera em matéria de 10 de fevereiro:
“O despacho do juiz Sérgio Moro que autorizou a Polícia Federal (PF) a instaurar um inquérito para apurar se empresas investigadas na Operação Lava Jato pagaram por obras de melhorias em um sítio frequentado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi publicado ontem (9) ‘inadvertidamente’ no site do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, por um equívoco do Poder Judiciário.”
Pois bem. Pagamos o Judiciário mais caro do mundo, para que em questões extremamente delicadas, que implicam sérias consequências para o país na avaliação internacional, se façam ações “inadvertidas” e se cometam “equívocos” em prejuízo sempre de uma mesma parte?É o que parece.
O segundo erro, ainda mais grotesco, no nível mais policialesco que se possa conceber, aconteceu em 1º de março. Foi a determinação do promotor Cássio Conserino, do MP de São Paulo, de que Lula e sua esposa deveriam depor, ressalvando-se que:
“em caso de não comparecimento importará na tomada de medidas legais cabíveis, inclusive condução coercitiva pela Polícia Civil e Militar nos termos das normas acima referidas”.
Logo em seguida, como se não fosse mais que um cisco nos olhos da opinião pública, como se esse carnaval não rebaixasse uma instituição essencial nos regimes democráticos, o Ministério Público, o promotor Cássio Conserino informou ao Jornal Nacional que cometera um erro. Um mero e banal erro. Que Lula e Marisa não seriam obrigados a depor. É evidente que, diante de um “erro” desse e da sua gravidade, em muitas partes do mundo, esse procurador seria afastado. Mas nada aconteceu, prova de que ele nada a favor de uma corrente de cumplicidade estabelecida no Judiciário brasileiro.
O uso de uma instituição judicial para fins que são alheios a ela, para autopromoção, para perseguição, para uma guerrilha que mancha a imagem do inimigo e serve à sua desmoralização, não pode ser conduta acertada.
Mas o que fez o Ministério Público Federal agora quando, sem motivo algum que o justificasse, ordenou que Lula fosse conduzido à força para depor três dias depois? Esse gesto não guarda ares de uma vingança contra a afirmação de Lula, naquele primeiro de março, quando informou que não deporia na MP de São Paulo? A proximidade temporal entre os dois eventos não deixa sérias dúvidas no ar?
O terceiro erro foi em relação ao Instituto Lula, que tem sido o porta-voz, o único, a rebater dia após dia, hora após hora, a enxurrada de calúnias que se derrama sobre o ex-presidente. A partir da “análise” de uma planilha feita por Marcelo Odebrecht, a PF chegou a curiosas “hipóteses investigativas”:
Entre os “usos” estão a anotação “Prédio (IL)” e o número 12.422.000, provável referência a R$ 12,4 milhões, segundo a PF. Os policiais apontaram que “não foram encontradas menções a tal sigla” no aparelho celular periciado de Marcelo Odebrecht, mas “pode ser uma alusão ao Instituto Lula”.
A dedução sherlockiana foi de que a Odebrecht poderia ter doado R$ 12,4 milhões para a construção do prédio em que funciona o Instituto Lula. Está na Operação Acarajé, de 23 de fevereiro. Ocorre, como veio a ser esclarecido, que se trata neste caso também de um erro. Que o Instituto Lula não ocupa um prédio, mas um casarão. E que este não foi construído agora, mas há muito tempo.
Cada um desses erros serviu a um belo carnaval na mídia, desorientou a opinião pública, e distribuiu interrogações levianas em torno da figura de Lula. O único traço real em tudo isso é a cumplicidade convergente das instituições da Justiça, da Polícia Federal e da mídia para produzirem os fatos. E, desses fatos que devem ser produzidos doa a quem doer, o mais importante, o que se consagrará como grandfinale, é a prisão de Lula.
A Operação Aletheia se destina a ser a preparação dessa finalização. Mas seu pivot, surpreende constatar, é a delação de Delcídio do Amaral, vazada pela revista IstoÉ. Será que, por não ter encontrado nada consistente em 24 meses de investigações, o desespero levou a conceder crédito às revelações de um indivíduo que há poucas semanas era execrado pelo país inteiro? Estaremos diante de uma nova forma de vida híbrida, o vilão imaculado, nascida da Lava Jato e dos laboratórios das delações premiadas?
Delcídio foi chamado pela mídia de delinquente, mentiroso, bandido, desclassificado, corrupto, chantagista, etc., logo após a sua prisão em 25 de novembro. Hoje parece destinado a uma reabilitação relâmpago, as homes voltam a estampar suas melhores fotos, com seus melhores ternos, como se um banho de Lava Jato pudesse deixar sua alma brilhante e engomada num piscar de olhos. Da mesma forma, como o UOL jogou na home uma foto do vice-presidente Michel Temer, já em pose presidencial. Ora, mesmo num país habituado à cretinice, sabe-se que não se pode jogar baldes de excremento na cabeça de um Delcídio num dia e fazer dele testemunha limpa e confiável, no outro. Isso seria confessar que o desespero é quem dá as cartas agora.
Imagine-se que absurdo não seria se, algum dia, uma versão da história brasileira desse período começasse assim: “Quando ficou claro o ridículo das acusações sobre o barquinho que custou R$ R$ 4.126.00 adquirido em 24 prestações, sobre o tríplex de 200 metros quadrados, que nunca foi comprado, sobre o sítio de propriedade de terceiros, começou uma luta com regras inteiramente alheias à sensatez judicial. A questão não era mais ‘Lula é culpado ou não?’ Mas sim outra bem diversa: ‘Lula pensa que pode ser mais esperto que a gente? Um torneiro mecânico? Ele vai ver só’. Parecia que algumas instituições do país, entre as quais a mídia, entendiam participar de uma briga de gangues. Nenhum golpe era tido por proibido ou impróprio ao decoro. Cometer erros, atos inadvertidos, inadvertências, equívocos, era só a ponta desse iceberg. Havia ainda os ‘vazamentos’.”
Pois é, os vazamentos. Os vazamentos, que vieram crescendo em intensidade nos últimos dias, e na semana passada, com a delação escorrida nas páginas da IstoÉ, ultrapassaram todas as medidas. Este vazamento, pelo teor de sua fonte, as confissões da figura mais desonrada da República, o senador Delcídio do Amaral, era para ser objeto de gargalhadas. No entanto, como dizem duas notas do jornalista Leandro Mazzini em sua coluna no UOL, levou o procurador-geral, Rodrigo Janot, a uma reunião noturna.
“Janot tem em mãos há mais de uma semana o conteúdo bombástico da delação premiada do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). O vazamento à imprensa ontem pode acelerar nova fase da operação.(Janot faz reunião de emergência com núcleo da Lava Jato)
Não é engraçado? O vazamento sai da Justiça para a mídia, ou seja, de algum cano furado na PF ou no MPF para a torneira da IstoÉ. A mídia agradece e publica e, assim, “o vazamento à imprensa” acelera a nova fase da operação pelo MPF. Os dados sigilosos são ofertados graciosamente para serem violados. A violação do que deve ser preservado, ao invés de impugnar o conteúdo, faz acelerar o seu uso. Nunca ouvi falar de um inquérito administrativo (deve existir, mas nunca vi na imprensa suas conclusões e os nomes dos punidos) aberto para investigar vazamentos. Como é assunto que pode render muito dinheiro para quem sai na frente nas bancas, não é impossível que um vazamento seja bem remunerado. Razão a mais para ser investigado. Mas não. O vazamento se tornou estimulo para “acelerar” a tomada de decisões da justiça. Não é grotesco?
Nesse redemoinho de audácia crescente, nada é respeitado, nem os elementos culturais e étnicos, nem os riscos econômicos. Batizou-se a 23ª fase da operação como Acarajé. E acarajé, como informou uma matéria da Folha, passou a significar “dinheiro de propina”. Não importa se é um símbolo da cultura brasileira, reconhecido pela Unesco, se é bem intangível ou patrimônio imaterial ─ Acarajé agora é crime. Nada é intangível. Também não importa o tamanho dos prejuízos econômicos que revelações fictícias, vazamentos oportunos e seletivos, venham a produzir.
Ao humilhar um ex-presidente, humilha-se na verdade toda a instituição que tem em sua cúpula a presidência, isto é, um dos poderes inteiro, o Executivo. Se num país, um poder pretendese impor sobre todos os demais, o resultado é uma deformação. Desde que as deformidades passam a dar as cartas, todas as regras se decompõem. Um poder só é equilibrado dentro do equilíbrio de poderes. E isso calibra a visão internacional a respeito do país. Ou alguém pensa que enganar a China e os EUA é a mesma coisa que mistificar os setores menos esclarecidas da opinião brasileira? Os parceiros internacionais do Brasil hoje enxergam diante deles uma república desprezível.
Esse foi o ensaio geral para a prisão de Lula, que talvez seja o objeto da 25ª fase da Lava Jato. A alma desse golpe é menos consistente que um sopro de apagar velinha de aniversário de criança. A situação não é mais nem menos que as tantas situações de pré-golpe, ainda que com vestimenta mais camuflada, que o país viveu desde os anos 30.
(Acabei de assistir ao vídeo do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima que afirma sobre a condução coercitiva de Lula: “Temos os favores feitos pelas empreiteiras, OAS e Odebrecht, um sítio, que nós estamos investigando a propriedade, mas acreditamos até o momento ser do senhor Luiz Inácio, e também temos bem claro que houve pagamentos de bem feitorias no triplex em Guarujá.”Se a motivação foi essa, é pior do que se tivesse sido pautada pela delação de Delcídio, já que essas hipóteses já estão envelhecidas e não foram provadas. Se foi isso, foi pura demonstração de força. Ou seja, violência pura. É verdade que o Procurador diz que “Esse é o momento de sermos republicanos, não há ninguém isento de investigação no país”. Ora, investigação é uma coisa, condução coercitiva sob constrangimento físico humilhante é outra completamente diferente. Nesse caso, trata-se de praticar uma humilhação ignóbil, não só a Lula e ao PT, mas também aos eleitores de Lula e, o que é pior, à instituição da Justiça, que não pode ser usada para fins que deixem qualquer margem de suspeita de que não sejam os seus, os legítimos.
O nome Operação Aletheia parece ter sido um perigoso e comprometedor erro. A palavra grega significa desvelamento, revelação, é a noção central do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Ele a colocou em circulação e a tornou célebre. Como o mundo dá muitas voltas, uma das ironias da história é que a grande revelação (Aletheia) sobre a vida de Heidegger, foijusto sobre sua íntima colaboração com o nazismo. Por isso, o gesto de colocar na testa de uma operação policial um nome tão suspeito, talvez diga mais do que era a intenção dos seus promotores. Talvez desvele mais do que esperavam. Ao menos se for verdade que, nas ações que estamos observando, se revela um desejo de destruição das instituições democráticas, engajando-as por uso abusivonuma caçada política sem precedentes.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, professor universitário e escritor.
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