O quadro já vinha se delineando desde a posse do capitão-de-bravata. Mas agora se consolidou de vez: os três poderes e as mais poderosas instituições de Estado do país vêm abdicando diariamente de suas atribuições, e deixando correr frouxo, numa escalada perigosa em direção à anarquia. E, assim, pela primeira vez na história, presenciamos um país em frangalhos, sem freios nem contrafreios, sem hierarquia nem coordenação, e tudo isso num dos momentos mais dramáticos, quando o Brasil e o mundo se debatem para enfrentar uma das mais agressivas pandemias, que por aqui já chega perto de emplacar o número tenebroso de meio milhão de mortos.
E isso é muito perigoso. O Poder Executivo não governa para o país. Na verdade, nunca governou, desde que Bolsonaro tomou posse. O presidente se aplica, isto sim, e com denodo, é em favor de um projeto pessoal de poder absoluto, e para isso não hesita em passar por cima dos mais elementares princípios do estatuto democrático. Por capricho pessoal, e não por necessidade institucional, por exemplo, troca o comando das três forças armadas de uma penada, enquanto mantém no governo figuras que trabalham em sentido contrário à destinação de suas pastas, como o corrupto ministro do meio ambiente Ricardo Salles, alvo de repulsa planetária. Ou esse fantoche negro e racista que continua à frente da Fundação Palmares. Sem falar na pouca vergonha de trocar três vezes de ministro da saúde, só porque alguns se recusaram a afinar suas violas pela rebeca desafinada dele, que se julga o maior infectologista da história, mas não sabe nem pra que serve um chá de boldo.
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As denúncias de corrupção dele e de sua família, além da prática dos mais diversos tipos de crimes de responsabilidade, já desaguaram em mais de uma centena de pedidos de impeachment. Mas nada acontece, nem sequer a apreciação das denúncias. Porque o Poder Legislativo, comprado a peso de bilionárias emendas parlamentares, precisa pagar a conta ao capitão. E está pagando, centavo por centavo. Ou seja: o Congresso Nacional abdicou vergonhosamente de suas funções. E isso é muito perigoso.
O Poder Judiciário, última esperança de alguma ordem no galinheiro, até agora não se mexeu para interditar por incapacidade o lunático que diariamente vem montando as estruturas para executar um golpe de estado que já tem até data marcada. Se vencer a eleição de 2022, sentir-se-á fortalecido para dar o bote. E se perder, já avisou que não respeitará o desejo das urnas eletrônicas, que acusa de fraudulentas, e por isso defende a volta do voto de papel que, este sim, permitiu fraudes históricas como a de que ele próprio foi beneficiário nas eleições de 1994, quando ganhou seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados, onde passou quase trinta anos sem produzir coisa alguma.
O Exército abriu mão vergonhosamente das suas funções de instituição de estado, ao arquivar o processo por indisciplina contra o ex-ministro Eduardo Pazuello, flagrado, fotografado e filmado ao lado do capitão em pleno ato de natureza político-eleitoral. E isso é muito perigoso. Por falar em eleitoral, a Justiça Eleitoral – leia-se: TSE – simplesmente não enxerga ou se recusa a ver o desrespeito diário de Bolsonaro à legislação que proíbe atos de campanha política antecipada, os quais, de ofício, já deveria ter coibido e punido exemplarmente os responsáveis, inclusive o capitão. E isso é muito perigoso.
No Jaburu, há um vice-presidente que discorda de todas as ações do presidente da República. Mas, em nome de uma canhestra interpretação do princípio hierárquico, não vem a público se posicionar contra os descalabros. Prefere o silêncio obsequioso, embora já tenha firmado posições bem claras a respeito de atos do presidente dos quais discorda, como essa participação do general Pazuello numa manifestação nitidamente política, novamente sob o argumento insustentável do respeito à hierarquia. E isso é muito perigoso.
PublicidadeEnquanto até fora do Brasil os gritos de “Fora Bolsonaro” se avolumam nos mais diversos países, por aqui o ímpeto das manifestações oposicionistas é contido pelo receio das aglomerações, que os fanáticos adeptos do negacionismo do capitão simplesmente desprezam e até celebram. E isso é muito perigoso.
O leitor talvez já percebeu que não estamos prestes a enfrentar uma crise institucional – nós já estamos é mergulhados nela até o gogó. A bagunça se institucionalizou sob a batuta de um demente que não sabe nem nunca soube distinguir a diferença entre mandar e governar.
O quadro lembra aquela charge famosa do homem que caiu do prédio de 30 andares e, ao passar pelo 15º, comentou – Até aqui… tudo bem!
Não sei você, leitor, mas eu ando preocupado. O que é pior: olho para todos os lados e não encontro um só poder ou instituição da qual possa esperar uma ação concreta que pelo menos faça qualquer coisa capaz de reverter a queda livre em que estamos despencando. Como diria o Chico Buarque na canção famosa escrita em plena ditadura militar:
“Eu só quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.
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