Roberto Tardelli *
Na vida em sociedade, já não há mistérios. Como se saber se alguém é patrão ou patroa? Fácil, quem não for pião, bate ponto; patrão, patroa, jamais. Bacana que é bacana, trabalha com motorista, alguns, por serem bacanas públicos, possuem motoristas públicos, que os conduzem privativamente. Tem elevador social e elevador de serviço, tem elevador privativo, tem sala VIP, lugares em que limites existem apenas residualmente, não se imagina, em uma sociedade desacostumada com igualdades públicas, uma regra de limites que impeça quem estiver no degrau de cima de prosseguir em seu plácido paraíso.
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Aliás, em uma sociedade profundamente desigual, o bom de ser bacana está em que nada limita o bacana, mormente o bacana agente político, aquele ou aquela que pode, em uma canetada, ainda que seja uma Bic, nos mandar para o olho do furacão. Ter liberdade absoluta de destruir é uma marca de quem for bacana no Brasil. Melhor, mas muito melhor do que lasagna é poder mandar, determinar, sem preocupação alguma com as consequências da ordem que se deu.
Se o uso do cachimbo faz a boca torta, pode-se dizer que o uso da mão de pedra nos faz esquecer seu peso e a capacidade destruidora e em lugar algum desse planeta, é possível conviver com gente muito poderosa, que não tenha um contraponto para o seu poder.
A lição que a Humanidade nos prega é que toda pessoa que tiver poder na mão, precisará temer o poder que tem, sob pena de transformar-se em uma monstruosidade humana, ainda que esse limite seja tímido, envergonhado, desculpando-se por sua existência.
PublicidadeExemplo desse limite tíbio é o Projeto de Lei que cria figuras penais típicas para autoridades que até hoje eram inatingíveis e não poderia causar esse pânico que causou na turma do elevador privativo, a menos que admitíssemos a hipótese francamente insana da existência de uma casta de agentes públicos, cuja limitação seria apenas o freio ético-moral de cada um.
O projeto de lei levado à sanção presidencial, posso sofrer as pedradas todas, tem mecanismos de autopreservação muito sutis, a começar pelo fato de que as figuras típicas nele criadas são todas de ação penal pública incondicionada; ou seja, somente o Ministério Público pode ajuizar a ação penal dela decorrente. Isso nos dá o primeiro aviso: perseguido e perseguidor dividem o mesmo cafezinho.
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Parece uma coisa de doido e, efetivamente, é: promotores e juízes estão esgoelando contra uma lei que somente terá existência efetiva, a partir da ação dos próprios promotores. A prima pobre da carreira jurídica, a polícia, gritou junto, até para ganhar algum paralelismo. Mas, raios que nos partam, à polícia civil incumbirá investigar, ao MP cumprirá denunciar (quero ver, quero ver) e ao Judiciário cumprirá julgar aqueles crimes que teoricamente apenas eles poderiam cometer. Deu para perceber?
O medo coletivo e corporativo que se instalou nas carreiras jurídicas pouco tem a ver com a possibilidade de punição, que continuará meramente retórica, uma vez que a chave processual continua nas mãos do Estado. Esse medão está em desnudar ao público uma simbiose que vem se desfolhando dia a dia com maior intensidade das conversas capturadas pelo site The Intercept, podendo ganhar uma dimensão bem maior do que aquela supunha nossa vã imaginação. Ou eles não confiam neles próprios e o medo do projeto de lei é, na verdade, medo de retaliações pessoais ou internas uma vez que tudo está absolutamente impermeável aos advogados que, em tese, sequer serão vítimas dos crimes criados, mas os clientes que representam.
Os crime descritos na lei são dolosos, super especificamente dolosos, perdoe-me o meu amigo Juarez Tavares pela expressão horrorosa, mas é impressionante o cuidado que o projeto revelou em deixar claro, claríssimo, que “as condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.(…) A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.”
“Finalidade específica”, não me lembro de ter lido essa expressão em outra lei qualquer que regulasse alguma conduta criminosa. Ou seja, é preciso ficar provado que o juiz ou o promotor de justiça ou procurador da república quisesse especificamente prejudicar o Zé dos Anzóis que caiu em sua rede persecutória. Provar isso, só com psicografia ou com a entrega de alguma conversa, para usar uma palavra que retornou das profundas, cabulosa. A brutal estupidez, aquela que causaria espanto nas vovós mais acolhedoras, continua a ser fato atípico. Ele condenou apenas com a prova produzida no inquérito e mandou para o inferno aquele um, porque “entende que tudo ali é prova”. O outro denuncia com base em prova obtida mediante rotura, “porque não há prova evidente das supostas sevícias a que teria sido submetido”. Tudo certo, tudo atípico. A burrice das autoridades continua a ser um azar do jurisdicionado.
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A demonstração dessa “finalidade específica” manda para o espaço qualquer possibilidade de punição, a menos que haja escritos, mensagens, conversas, filmes, etc, permitindo afirmar-se que se a autoridade a ser punida não entregar antecipadamente a rapadura, esqueçam.
Todos os crimes são apenados com detenção. Mandam o cara para um cárcere maldito, superlotado e enlouquecedor, praticando o tipo penal de decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, descrito no art. 9º. Claro, sempre e sempre com a finalidade específica de prejudicar o acusado, pena de um a quatro anos de detenção.
Quem decretar uma prisão em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, com a específica finalidade de prejudicar a pessoa que sofreu a medida, jamais experimentará de seu próprio veneno, por expressa vedação legal. Minha manicure já sabe que a pena de detenção impede o recolhimento à prisão.
Não se poderá jamais dizer que “quem com ferro fere, com ferro será ferido”, isso não é com a gente.
Bacanas burocratas-aristocratas continuam e continuarão do lado de fora do inferno que criaram. E pensar que uma lei inodora, insossa e insípida como essa provocou esse estardalhaço todo.
Imaginem se fosse pra valer.
* Roberto Tardelli é advogado criminalista e procurador de justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo
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