Bezerra Couto*
Sabe aquela piada antiga? Acho que é mais ou menos assim. Quando Deus estava criando o mundo, escolheu um lugar onde não haveria terremoto, nem furacão, nem nevascas. Um lugar rico em minerais e com terra boa para plantar, de natureza exuberante, vegetação fantástica, lindas montanhas e belas praias. E disseram a Deus: “Mas aí todo mundo vai querer viver nesse paraíso”. E Deus: “Espera pra ver o povinho que vou botar lá”. O lugar, claro, é o Brasil.
Como toda anedota, a estorinha traz enorme carga de preconceito. Mas há muito tempo é usada, mormente por integrantes das elites nacionais, para justificar as nunca superadas mazelas brasileiras. Como se as classes dominantes, responsáveis maiores por nossos problemas crônicos, quisessem debitar na conta do povão os fracassos da nação na educação, na saúde, no desenvolvimento econômico, na política etc. Aquele velho papo: não tenho nada com isso, a culpa é da plebe, que é preguiçosa, ou burra, ou feia, descende de portugueses, índios e negros e não, digamos, de escandinavos ou anglo-saxões…
Não embarco nessa. Pra começar, adoro Portugal, e a beleza de certas índias e negras (na boa, Isabela!) mexem com, digamos, meu senso estético. Tô convencido de que os grandes malfeitores do país moram em mansões, circulam em ambientes grã-finos e – seja no setor privado ou na esfera pública – concentram um poder que lhes permite tomar as decisões fundamentais que fazem do Brasil esta coisinha melancólica, tão aquém daquilo que poderia ser.
Tem um pedaço desse filme, porém, em que nós, que sobrevivemos entre os estratos médios e inferiores da estrutura social, podemos interferir. E é, precisamente, na política. Não podemos apenas eleger ou derrotar candidatos nas urnas. Podemos fiscalizá-los, acompanhá-los, denunciá-los em praça pública, encher o saco deles. E o que fazemos? Cultivamos vastas plantações de ACMs, Quércias, Malufs, Garotinhos, Bob Jeffersons. Damos oxigênio para entrarem em cena Valérios, Burattis, Barquetes, Serjões e suas proezas ilimitadas.
Quem diria, o tempo me faz dar razão ao Pelé: o brasileiro, de fato, vota mal. Prova disso foi o plebiscito do desarmamento. Um pesadelo, aquilo. Charlton Heston e o deputado Fleury vencendo Michael Moore e Dalmo Dallari. O marketing de combate passando com um trator por cima do conhecimento internacional acumulado no assunto e os corpos baleados das vítimas do Carandiru. OK, a campanha do outro lado – não lembro mais se do não ou do sim – foi péssima. O ambiente era de revolta com o mensalão, os governos, as proibições. Parte da mídia, histérica, convenceu um monte de gente de que, pensando bem, a ultradireitista National Riffles Association (a NFA) está certa. Que ter armas de fogo e matar são direitos constitucionais… enfim, um pesadelo.
Lembro do plebiscito porque revejo, em DVD, Tiros em Columbine. Tiro o filme, mas não engato no sono. Zapeio até parar na TV Senado. Outra reprise: sessão gravada do Plenário.
ACM fala em “governo de ladrões”. O do Lula, se entendi bem. O nobre senador nada fala sobre ladrões anteriores, digo, de governos anteriores. Na cama, pergunto a Isabela se poderemos dormir tranqüilos com o patriarca dos Magalhães zelando pela moralidade nacional. Ao meu lado, ela não responde, parece que já cochila. Na tela, outros políticos oposicionistas se revezam para expressar indignação contra o mesmo governo, o do Lula, quero dizer. Pá pam pou, estoca um, do PSDB. Ah, sim, identifiquei: o cara é acusado de envolvimento com um poderoso bicheiro. Agora, aparece outro, do Pefelezaço: plac ploc bam pou! Pau no governo Lula! Pau no PT! O autor do discurso, pré-candidato a governador no Nordeste, é conhecido por suas ligações com um grande grupo econômico suspeito de financiar o mensalão. Mas desempenha o papel de paladino da ética. Entram em cena parlamentares petistas, que falam algumas verdades sobre as contradições da oposição, mas tentam tapar o sol com a peneira em relação aos descaminhos do governo.
Moral da história: se o triste espetáculo diário oferecido pela política brasileira tem como atores senadores, deputados e outras autoridades, os eleitores são no mínimo co-autores intelectuais do crime. Nós, eleitores, que botamos aquelas pessoas ali e agora fazemos de conta que não temos nada com isso. E digo co-autores porque embarcamos na canoa furada de partidos, políticos e esquemas de poder patrocinados, sobretudo, pelas classes dominantes de ontem e de sempre. As mesmas, aliás, que controlam a grande imprensa.
Um dia talvez comecemos – você, eu, seu irmão mais velho, a vizinha do sexto andar… – a assumir nossa cota de responsabilidade pelos problemas do país, e da nossa rua, da nossa cidade, estado etc. Nesse dia, daremos o passo inicial para atear fogo a esse teatro que é a política nacional. O incêndio de que falo é mera metáfora. A revolução que meu coração romântico acalenta seria pacífica. Mas profunda o bastante para significar a glória definitiva de certo sufixo deliciosamente lusitano: a vitória da informação e da conscientização sobre a manipulação.
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