Tudo começou porque eu queria conhecer melhor o peruano Vargas Llosa, 74 anos, como cronista, e também porque tenho lido e ouvido horrores do sujeito – na minha opinião,um dos maiores e mais originais ficcionistas mundiais do último meio século, derradeira e finíssima flor do boom literário latino-americano (fenômeno ocorrido aproximadamente entre 1960 e 1990) – que guinou alucinadamente para uma certa ultradireita apátrida (aquela do lado certo do azar), servil e com asinhas, um pouco estilo FHC só que COM talento e muitíssimo a perder, porra.
Até A História de Mayta, até Quem matou Palomino Molero?, sem contar Conversa na Catedral, irretocável obra prima, A Casa Verde e A Guerra do Fim do Mundo era um dos meus autores de sustentação (e o desgraçado ainda é). Mas aí pelo final dos anos 90, não sei por que, parei de ler os novos lançamentos – precisamente n’A festa do bode, sobre Trujillo da República Dominicana, que aliás acabo de ler, elucidando o súbito desinteresse antes como um mau presságio: Vargas Llosa decaiu bastante.
Até porque o direitismo babaca, a puxassaquisce pânica euro-ianque e uma certa gagueira prematura (só por desaforo e castigo pra deixar de ser imbecil) devem ter contribuído sobremaneira. Só para terem uma idéia: a heroína d’O bode, Urania, foragida adolescente da ilha graças às bondosíssimas madres católicas (sic), vive nos EUA como alta funcionária do Banco Mundial, instituição para a qual se dedica full-time. Imagino que caprichando nas desregulações, ajustes estruturais e fodendo exemplarmente todas as repúblicas imprestáveis e preguiçosas do Third World.
Pois é, Marito, não me engana que eu não gosto.
Voltando: começou também porque, a propósito de conhecer o cronista, junto com O bode (editora Mandarim, 2000) veio A linguagem da paixão, crônicas (Editora ARX, 2000). Engraçado. Até quanto às editoras, Llosa baixou de categoria, lembro que anteriormente era exclusivo da Francisco Alves. E com direito a traduções de Olga Savary (sorry, Wladir Dupont, você também é ótimo, mas infelizmente esse Vargas é ruim).
Recomecemos novamente: aleatoriamente abri num texto “O Príncipe Agoureiro” em que Llosa comenta – elogiosamente – o ensaio Guerra Civil de Hans Magnus Enzensberger. Bom, não conheço este do Enzensberger, mas quando li: “essa violência moderna que existe e explode quase sempre de forma gratuita e autodestrutiva e vai convertendo o globo numa selva de tribos em guerra, onde toda diferença se torna um risco moral e um vagão de metrô (europeu) pode se converter numa pequena Bósnia”, aí caiu a ficha: Paulo Arantes em Extinção (Boitempo, 2007) – objeto de três colunas minhas aqui no site, “Admirável Mundo Novo” e “Marcas do Mal” I e II – também comenta este ensaio especificando o mote metrô-Bósnia.
Mas com significados e conteúdos diametralmente opostos!
Vejamos primeiramente Enzensberger na “visão” de Vargas Llosa (a crônica é de 1995, lá vão alguns trechos que, bom, prefiro não botar os adjetivos):
“O pessimismo de Enzensberger tem como ponto de partida a criação do mercado mundial….O triunfo do sistema capitalista e o fato de que hoje a produção e o comércio só podem ser feitos em escala planetária, dentro dessa rede de interdependência econômica onde funcionam empresas e países, criou-se uma enorme massa de pobres “estruturais” – por ele chamados “massas supérfluas” – condenados a uma marginalização inescapável. Esse catastrofismo não está apoiado em fatos (sic) e se funda numa visão errônea do capitalismo. Graças à voracidade que lhe é inata, o sistema que criou o mercado foi se estendendo das antigas cidades européias até todos os cantos do mundo e estabeleceu esse mercado mundial como uma realidade irreversível (there is no alternative, sou eu, a nossa velha Tina). Mas graças a isso os países pobres podem, hoje em dia, começar a deixar de ser pobres e, como a Indonésia (que desmontou em 1996), chegar a ter uma estrutura econômica mais sólida que a da Grã-Bretanha (que derreteu parcialmente em 2008), ou as reservas financeiras astronômicas de Taiwan (implodidas junto com as dos demais “tigres asiáticos” em 1997), ou criar um milhão de empregos em cinco anos como fez o Chile (de Pinochet, of course, naquela época eles deviam ser unha e carne. Aquele general encantador privatizou as aposentadorias!).
Lá pelas tantas, Vargas, muito lampeiro, anuncia de modo edificante: “Mas essa insatisfação e desgosto dos pobres com sua pobreza geram também uma energia formidável que, bem canalizada, pode se converter num extraordinário motor do desenvolvimento. Assim aconteceu com os países do sudeste asiático (de novo, os tigres) que, com todas as críticas que se lhes possa fazer – relativas à liberdade política e aos direitos humanos, por exemplo (bobagem!) – mostraram que podem criar milhões de empregos e condições de vida dignas para sociedades que até ontem figuravam entre as mais atrasadas do planeta.” (Hernando de Soto,Nestor Garcia Canclini[1] e Vargas, as tietes latino-americanas da globalização, realmente constituem o quarteto trio Los Tontos comemorando a chegada de Papai Noel, isto é, Santa Claus).
Agora, o mesmo assunto e Enzensberger him self por Paulo Arantes. Com toques da minha colher torta:
Referindo-se ainda aos estudos sobre violência urbana, Arantes constata uma inversão de perspectiva quando se passa da periferia para o centro: diante da explosão de violência também inusitada nas últimas décadas de crescimento econômico, ninguém fala em coexistência paradoxal entre violência e democracia, mas da descoberta terrível de que algo como “um capitalismo com lei e cidadania” pode não ter sido mais do quê uma miragem de trinta anos!
“Enquanto nos democratizávamos na periferia – democracia ainda que marcada pela regressão econômica que também sepultaria a simétrica ilusão desenvolvimentista – as sociedades centrais viviam o retorno dramático da “questão social”, isto é, redescobriam que as desigualdades estavam de volta, cavando uma nova fratura social, que a pobreza não fora banida, sendo os “novos pobres” uma legião, que o racismo e a xenofobia redivivos pareciam recompor o cenário de entreguerras ou, ainda pior, que a violência, supostamente absorvida por um secular processo civilizador, parecia retornar em escala endêmica, não só nos bairros sinistrados e gueitoizados das grandes cidades. Em vez do “paradoxo”, uma ferida narcísica de bom tamanho: onde está a “civilização” de sociedades que já não eram mais nem coesas, nem igualitárias e, muito menos, pacíficas? O fato é que a associação entre capitalismo, industrialização e guerra parece vincular “pacificação” interna nos limites territoriais dos Estados capitalistas, deixando de lado a “nova violência” inerente aos processos de exploração econômica “pacífica” ao “pós-militarismo” voltado para fora nas relações de competição interestados na arena política mundial. No livro “Guerra Civil”, H.M.Enzensberger afirma que qualquer vagão do metrô numa capital européia pode se transformar numa Bósnia, algo típico dum processo de terceiromundização (tiermondization) do Primeiro Mundo. Só que o europeu ou norte-americano parece esquecer que se hipoteticamente um bairro inteiro de qualquer grande cidade norte-americana ou européia virasse uma Bósnia, as forças policiais da ordem agiriam como numa guerra de trincheiras, tratando seus habitantes como um exército de ocupação faria como o inimigo, etc.”
Está em todos os filmes xyz-adnauseam que eles produzem para suposto consumo dos trouxas aqui da periferia, dos quais eles próprios são os maiores (talvez únicos) fãs e consumidores, noves fora a idiotia onipresente de plantão em frente às telinhas e telões do planeta. Universalmente, não se trata de promover a guerra civil, de modo algum, mas de promover a guerra CONTRA OS CIVIS, incluindo a econômica no pacote aliado do pós-capitalismo suicida, flexibilizado e triunfante.
By the way: Quem é “O Príncipe Agoureiro”? O nosso queridíssimo Hans Magnus Enzensberger, a quem Vargas chama de “príncipe da intelligentsia européia”. No melhor estilo ancilar.
Serra e FHC deviam adotá-lo como livro de cabeceira.
[1] Que desses dois, De Soto e Garcia Canclini, realmente NÃO vou dar release!
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