Marcelo Mirisola*
Além de ser botânico, pesquisador-naturalista e profeta, Auguste de Saint-Hilaire era um escritor, e dos bons. Talvez nem desconfiasse, ou fosse demasiadamente prudente e tivesse tantos caminhos a percorrer que, de certo modo, deixou de prestar atenção nessa particularidade, mas eu – que não sei nem amarrar os sapatos – percebi logo nas suas primeiras linhas. Peguei carona na expedição desse francês genial que nos levaria às nascentes do Rio São Francisco.
O plano era chegarmos lá, onde nasce o rio, em meados do ano da graça de 1817. Posso dizer que não foi nada fácil sair do Rio de Janeiro por conta da burocracia local, e creio que é desinteressante entrar em detalhes dessa primeira etapa diante da perspectiva de viagem tão longa e auspiciosa. Os trâmites burocráticos no Rio entregam as dificuldades e o abandono que Saint-Hilaire sofreria ao longo de todo o percurso. Aliás – ao longo dos seis anos em que esteve aqui em nossas plagas – o abandono foi uma constante na vida de Auguste de Saint-Hilaire, acima de tudo um humanista abnegado. Eu mesmo o deixei na mão várias vezes, podem acreditar.
Depois de um dia e meio que partimos do Rio de Janeiro, rumo a Porto da Estrela, não tenho – como viajante do século XIX – muita coisa a acrescentar aos relatos do próprio Saint-Hilaire. Corria tudo dentro do previsto. Naquela manhã, as maritacas acordaram mais cedo do que o costume, e despertaram o mal-humorado Prégent e todo o grupo de tropeiros. Desde o princípio não fui com a cara desse fulano, o tal de Prégent. Ele fazia o tipo cão-escopeta, uma espécie de ajudante-de-ordens de Saint-Hilaire. Se dependesse do faro dele, eu não estaria aqui, e talvez nem estivesse vivo, e esse relato decerto passaria em brancas nuvens. Mas eu sou insistente, e não me entrego fácil… e também sei como lidar com esse tipo de gente. Foi assim, portanto, que fiz o “pacto” com o verme do tal Prégent: custou-me 500 cruzados. Durante toda a viagem tive de suportá-lo… e ele a mim. Ele que ficasse esperto comigo, filhodaputa.
Como eu dizia, as malditas maritacas estavam fora de controle naquela manhã, e eu fui obrigado a levantar ainda meio cambaleante por conta da dor de cabeça da noite anterior. Quase 38 graus de febre, e a próxima farmácia ficava mais ou menos a uns cem anos de distância. Fazer o quê? Ora, fiz o meu Nescafé e comi um pedaço de bolo de fubá; o resto do grupo encilhava os animais e conversava animadamente sobre as perspectivas do dia que teríamos pela frente; um longo dia a bem-dizer, logo de manhã avistamos um grupo de negros à margem direita do Piabanha: estavam preparando a terra para o plantio do feijão que deveria ser colhido – segundo a estimativa de Saint-Hilaire – em julho próximo.
O francês me chamou a atenção sobre a colheita do feijão logo depois de passarmos pela fazenda do Abade Correia. Também foi pontual ao afirmar sobre o quanto o homem pode realizar na terra com um pouco mais de engenho e esforço.
Só um pouco, diga-se de passagem.
A propriedade do Abade era o exemplo disso. O padre aproveitava a temperatura amena da serra para cultivar um grande número de plantas de origem caucásica e européia. Um homem muito respeitado no Rio de Janeiro por conta de seus conhecimentos em agricultura, e era – garantiu-me Saint-Hilaire – um caso atípico de bom-senso aliado a um tino para os negócios igualmente incomum: porque soube transformar seus conhecimentos em agricultura em dinheiro; muito dinheiro que ganhava vendendo cravos na primavera e, além disso, durante o verão, despachava para Porto Estrela uma tropa de burros carregada de pêssegos, que vendia por aproximadamente 10.000 cruzados. Decerto devia ser um jesuíta, pensei maldosamente. Mas não falei nada para Saint-Hilaire. Uma vez que não queria – ao contrário de Prégent e dos tropeiros contratados – causar mais aborrecimentos e acrescentar preconceitos meus ao já sobrecarregado caminho do empenhado francês. Estávamos apenas no início na expedição. Depois de atravessarmos a propriedade do padre seguimos caminho – umas duas léguas – até chegarmos num rancho extremamente modesto, chamado Sumidouro, onde pernoitamos.
No dia seguinte, rumamos para o norte, da direção do povoado de Boa Vista da Pampulha. Ao longo desse caminho, Saint-Hilaire divertiu-se fazendo perguntas aos negros que logo se identificaram como oriundos de Benguela.
E é exatamente aqui que chamo a atenção dos leitores do século XXI. Confesso que nunca tive muita paciência para lengalengas ecológicos. Quando “comprei” o lombo metafísico de uma mula do século XIX ansiava pelas aventuras do escritor francês, o botânico e o ecologista sinceramente não me interessavam. Ingenuidade minha. Foi aí que tive a dimensão do desapego de espírito de Saint-Hilaire. E entendi que sua grandeza advinha de uma mistura de curiosidade com perspicácia. Vou ser sincero: embora aparentasse ser meio avoado, de bobo ele não tinha nada. E, para alcançar seus desideratos, Saint Hilaire – antes de ser escritor – teria de apelar para o contrário de tudo o que eu, até então, acreditava ser o melhor que podia tirar dele próprio; o que significava – em suma – descartar a vaidade, tatear e abaixar a guarda para chegar ao ponto ideal de dissecação; eis o método do francês. Um homem que fazia ciência no lombo de uma mula e que se divertia indagando os negros de Benguela da mesma forma que estudava as plantas, os mapas, os pássaros e o seu entorno. Nada escapava ao olhar de Saint-Hilaire. A partir dessa premissa, cotejou a agricultura que esses negros faziam na África com o sistema que adotaram aqui nas terras do Brasil.
Os negros disseram a Saint-Hilaire que, aqui como em seu país, o trabalho dos homens era o de derrubar e queimar as terras, ao passo que as mulheres e crianças cuidavam do plantio e da colheita. Vou citar ipsis litteris a conclusão que ouvi – e anotei – de Saint-Hilaire: “A semelhança entre as práticas seguidas em Benguela e as adotadas pelos brasileiros não nos deve, entretanto, levar a concluir que em agricultura os negros, os bárbaros e os escravos tenham sido necessariamente os mestres dos portugueses, mais ‘civilizados’ (as aspas são minhas). Quando estes chegaram à América já encontraram em uso entre os indígenas os métodos de cultivo que agora adotavam. Sendo bem provável que a honra caiba aos índios de terem sido seus mestres, e não aos africanos. Entretanto, mesmo que os portugueses não tivessem tido diante dos olhos esse exemplo, a dura necessidade haveria em breve de forçá-los a adotar o modelo indígena. De fato, que alternativa restava a eles, ao se verem diante de uma mata virgem e necessitando de terra para cultivo, a não ser derrubar a mata e atear-lhe fogo?”
Taí um homem consciencioso, e nada histérico. Como é que ele podia objetar o comportamento dos predadores diante das dificuldades que ele mesmo experimentara em seu dia-a-dia? Seria injusto reprovar a fome da onça em detrimento do vôo da caça, foi o que ele me garantiu. Havia um equilíbrio de forças premente. Todavia, Saint-Hilaire não se conformava em ser apenas justo, ia além, repito: era um cientista. E, sob este aspecto, implacável.
Palavras dele: “Porém podemos culpar os seus descendentes, e com razão, por continuarem a queimar florestas quando há agora à sua disposição tanta terra limpa e pronta para o cultivo; por privarem sem necessidade as gerações futuras dos grandes recursos que oferecem as matas; por correrem o risco de despojar as montanhas da necessária terra vegetal e tornar seus cursos d’agua menos abundantes; finalmente, por retardarem o progresso de sua própria civilização disseminando o deserto à sua passagem, à medida que buscam novas matas para queimar”.
Só para lembrar, o ano da graça era o de 1816.
E a conversa que ouvi entre Saint-Hilaire e os negros de Benguela revelaria ainda o abolicionista e um homem dotado de um senso de humor profético que chega até a arrepiar esse treco conflitante e cheio de culpa que eu – ainda… – insisto em chamar de minha alma. Vou ser sincero. Se eu não apear da mula metafísica antes da próxima crônica (o que é mais provável), espero continuar essa viagem com Saint-Hilaire até chegar às nascentes do São Francisco. Que Deus e o Imperador nos protejam, e que Prégent não me encha muito o saco.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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