— Espere, Teté. Vamos ver se nos ajuda a dirimir uma dúvida. O doutor Parmentier acha que os negros são tão humanos quanto os brancos, e eu afirmo ao contrário. O que você acha? — Perguntou-lhe Valmorain […]
Ela permaneceu muda, com os olhos no chão e as mãos juntas.
— Vamos, Teté. Responda sem medo. Estou esperando…
— O senhor sempre tem razão — murmurou ela, por fim.
— Ou seja, na sua opinião, os negros não são completamente humanos…
— Um ser que não é humano não tem opinião, senhor.
Este diálogo está registrado no romance “A Ilha sob o Mar”, de Isabel Allende (editora Bertrand Brasil, 2010).
Teté é o apelido de Zarite, negra e escrava de Valmorain. Toulouse Valmorain, francês e dono de engenho de açúcar, na segunda metade do século XIII, em Saint-Domingue, hoje Haiti, defendia a teoria de que os negros não eram humanos.
Essa teoria era verdade absoluta naquele período para muitos escravocratas franceses, portugueses, espanhóis, ingleses, etc.
Em todo período da história há verdades absolutas para algumas pessoas e instituições. Durante a Idade Média, a instituição Igreja Católica tinha suas verdades absolutas no campo da ética, da justiça e da moral. Quem contrariasse tais verdades era julgado pela Santa Inquisição e corria o risco de ser condenado ou condenada à masmorra e/ou à fogueira.
Um dos resultados da Revolução Francesa foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em outubro de 1789, que não vigorou de imediato em Saint-Domingue. Zarite e tantos outros negros continuaram escravos. Portanto, não humanos.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tem17 artigos. Entre eles, os seguintes: “Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. […] Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo […] Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade […]”
Deveria valer para a França e suas colônias, mas, na época, mesmo não alterando profundamente a realidade francesa e de suas colônias, influenciou a elaboração de leis no mundo todo.
Com a Declaração dos Direitos Humanos pelas Nações Unidas, muitos imaginaram que qualquer pessoa passaria a gozar destes direitos e a ser tratada como ser humano.
Humano, dono de seu corpo, como rege o artigo 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (10 de dezembro de 1948).
Espírito de fraternidade é justamente o que falta a muitos que se declaram cristãos e se consideram donos da verdade absoluta.
No Brasil, desde a campanha eleitoral de 2010, essa situação tem se revelado de maneira criminosa. Os donos da verdade absoluta condenam aquilo que vai contra a sua verdade. Por exemplo, condenam a homossexualidade.
Com isso, ignoram o ser humano, a fraternidade e o artigo 1° da Declaração dos Direitos do Homem: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”.
Escrevo este artigo no último dia 29 de dezembro de2011, ao tomar conhecimento de que a possível contratação do atleta Richarlyson, ex-São Paulo, pelo Palmeiras causou revolta entre seus torcedores.
Santos (de santo de altar) torcedores, donos da verdade, condenaram à fogueira o Richarlyson. Aliás, condenação esta que começou em 2007, pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, ao arquivar a queixa crime formulada por Richarlyson contra José Cirillo Jr., então diretor do Palmeiras, que insinuou que o jogador era gay.
Esses “santos de meia tigela”, como dizia minha avó, iniciaram, via twitter, uma onda de rejeição e ameaça de agressão, inclusive física, a Richarlyson.
Afirma o manifesto de um grupo de “santos” que a “resistência da torcida não vem do fato estrito de Richarlyson ser supostamente gay, mas pelos trejeitos com que o atleta se manifesta publicamente. ‘Ricky’ é muito afeminado e jogou por muito tempo no inimigo”. Preconceito puro.
Durante um jantar no Palestra Itália,representantes da organizada Mancha Verde exigiram a desistência do negócio e garantiram que agrediriam Richarlyson e que ele “nem sairia do aeroporto”.
Os dirigentes do Palmeiras, ao invés de enfrentar o preconceito, negam a contratação do atleta. Essa negativa é preconceituosa, assim já provou seu antigo diretor José Cirillo, e alimenta o preconceito.
A verdade absoluta de alguns (muitos) no século XII negava o humano direito aos negros. Hoje, muitos desses humanos direitos são negados aos homossexuais.
Se dependesse desses “humanistas” (que se dizem cristãos), os homossexuais seriam condenados à masmorra ou à fogueira.
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