Edemilson Paraná*
Poucos acontecimentos recentes simbolizam com maior força o esgotamento de representatividade da política institucional brasileira do que a aliança Rede-PSB para a disputa eleitoral de 2014. Tal reposicionamento de peças no tabuleiro eleitoral aprofunda o já desastroso quadro dos últimos anos de peemedebismo: o esgotamento completo da luta por projetos de país, perdidos no vazio das “não-alternativas” de poder.
Se para alguns a proposta política de Marina Silva já dava sinais de esgotamento programático logo na largada, é com sua secundarização em uma aliança pragmática com Eduardo Campos para concorrer à Presidência, no entanto, que virá o derradeiro balde de água fria. Apegada a uma visão reduzida da política e do poder em tempos de crise, Marina perdeu uma oportunidade ímpar em 2013: a de acabar o ano como a única possível credenciada a abrir um canal de diálogo com aqueles que foram às ruas em junho e que, a depender do desenrolar dos acontecimentos, podem voltar em 2014. Tomada isoladamente, tal escolha pode não significar muito à política brasileira, mas contextualizada no conjunto dos acontecimentos recentes, aprofunda o cenário de descrença e, portanto, instabilidade política das ruas.
O erro histórico que configura esse enorme desperdício está escorado em uma visão esquemática e matematizada a respeito dos protestos produzida por institutos de pesquisa e seus “analistas”: “organizados pela internet de modo espontâneo, os manifestantes não sabem exatamente o que querem”. Somado a isso, um apego profundo à aparência institucional em detrimento da essência ideológica da política, como se a história só pudesse ser produzida em gabinetes e escritórios. Estar fora deles seria o equivalente a estar fora do jogo. Dentro desse esquema, tensionado por um momento fértil para mobilizações sociais, nada assusta mais do que os pequenos desvios ao consenso conservador (imposto por uma ampla aliança no andar de cima) prontamente apontados como “radicais”. Apressando-se em fugir dessa pecha, Marina pegou o mais previsível do atalhos e negou-se ao desafio de, sem legenda formal, catalisar um movimento poderoso para ocupar as ruas, reconfigurar o debate político e abalar as estruturas de nossos cânones. Apegada ao pensamento de seu tempo, quando se pede coragem para enxergar além, tal aposta não estava, como ela já teria demonstrado anteriormente, à sua altura. Faltou visão para enxergar o óbvio; poucas crises são mais profundas do que a crise de legitimidade pela qual passa a democracia representativa burguesa, tal qual a conhecemos.
Longe de ser exclusiva de Marina, essa visão menor de poder é responsável da direta à esquerda pela ausência de alternativas políticas reais e programas concretos em diálogo com os anseios de junho. Com o aprofundamento da forma neoliberal de organização da esfera pública, chegamos ao fim da era dos líderes impetuosos e entramos de vez na era dos administradores bem comportados. No vale-tudo institucional de gabinetes, escritórios e campanhas eleitorais pela administração do nosso fracasso social em detrimento da luta por corações e mentes para sua superação estrutural, a cosmética fala mais alto que as éticas em disputa e o diálogo do incomunicável se instaura de vez. A completa falta de entendimento entre emissores e receptores das mensagens políticas (divisão cada vez menos tolerada), que não se comunicam nos mesmos códigos, é prontamente explicada como “eles não sabem o que querem”. Enquanto isso, a elevação do índice de greves e ocupações no último ano, as depredações e manifestações carregadas de raiva social na periferia e fora dela, o crescimento do neopentecostalismo de massas e do fundamentalismo religioso, os “rolezinhos”, a politização das torcidas organizadas e outros fenômenos, gritam significados bastante claros: algo está para acontecer no Brasil. Nem Marina, nem a direita tradicional, nem o condomínio governista ou sua oposição de esquerda estão capacitados para traduzir e agir com destreza nesse cenário, mas uma coisa parece certa: aferrar-se à institucionalidade e ao nosso modelo falido de democracia como forma de responder a tais angústias subterrâneas não parece ser a aposta certa nesta conjuntura. Não, pelo menos, para quem se obriga a olhar o tempo da política para além do intervalo de dois anos entre eleições.
Isso não significa, no entanto, desprezá-las. Se a rua é a chave interpretativa e eixo da ação política transformadora, é fato que as eleições jogam um papel importante à medida que precisam, de certa forma, se remeter a ela, abrindo diálogos, ampliando discursos, pautando debates, colocando reflexões, ainda que mínimas. Nesse particular, nada de novo no time Rede-PSB. Num partido composto por uma confederação de coronéis regionais vitaminados pelo governismo, que agora pretende alçar voos próprios, Campos aposta no esgotamento de 10 anos de condomínio petista no poder para viajar o país raspando onde pode correligionários de peso (não importando seu programa ou filiação ideológico-partidária), grandes empresários e financiadores de campanha em possíveis alianças que sejam capazes de animar uma reorganização da oposição em cima do vácuo deixado pela desidratação do pólo PSDB-DEM-PPS. O discurso cala fundo ao coração dos grandes jogadores da economia nacional: combate à inflação, respeito ao tripé da macroeconomia brasileira, diminuição de impostos, desonerações. Em resumo, se não uma reorganização da oposição de direita com ares de renovada modernização, mais do mesmo.
Se já sabemos também o que esperar do governismo e sua insistência surda em um social-liberalismo de coalizão que já rendeu o que poderia render, a responsabilidade da esquerda que não teme dizer seu nome cresce ainda mais neste cenário. Mais do que empenhados em provar que somos capazes de gerir um pacto que não é nosso, devemos reivindicar confronto incansável a ele, denunciando o que tem de mais cruel. Dessa forma, o palanque aberto com as eleições deve ser ocupado para vocalizar e traduzir da melhor forma possível essa angústia que pipoca aqui e ali em demonstrações aparentemente sem relação, mas que parecem caminhar na mesma direção: “a negação de tudo o que está aí”. Para onde vai essa negação fragmentada? Difícil saber. É da natureza das crises a abertura do cenário à opções que não haviam sido cogitadas como possíveis anteriormente. Uma oportunidade, em suma.
Os conflitos devem se acirrar e a tirar pela tradição colonial e autoritária de parte da sociedade brasileira, as possibilidades não parecem animadoras no que diz respeito à repressão. A apoteose pode demorar a chegar ou mesmo nunca vir. Dependerá também de nós. Neste processo, mais vale o acúmulo político-organizativo que tal ascensão pode nos oferecer, em meses ou em anos. Entre o encontro de placas tectônicas e um terremoto sempre há mudanças no ambiente que indicam o que virá. Felizes dos que conseguem capta-las e agir a tempo.
*Edemilson Paraná é vice-presidente do PSOL-DF, assessor de imprensa no Conselho Nacional do Ministério Público e mestrando em Sociologia na Universidade de Brasília (UnB)
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