Gustavo Dumas*
O ano é 1967 e no palco estão, em saudável disputa, Marília Medalha e Edu Lobo, Chico Buarque e MPB4, Gilberto Gil, Sergio Ricardo, Roberto Carlos… Tantos outros já ficaram pelo caminho. Sergio Ricardo é desclassificado por quebrar e atirar seu violão na plateia, após vaias e vaias para sua excepcional “Beto bom de bola”, um samba-homenagem a Garrincha feito um ano após o fiasco da Seleção Brasileira na Copa de 1966. Caetano, tratado por Veloso pelos jornalistas que cobrem o evento – destaque para os personalíssimos Cidinha Campos e Randal Júnior! – é vaiado quando entra em cena com sua guitarra elétrica. Roberto Carlos cantava samba e fazia piada tosca. O “mocinho” Chico tinha de ser catado nos bares da redondeza para garantir a presença de seu smoking na batalha. Gil, barbudo e tenso, é buscado no hotel, duas horas antes de se apresentar, chapadaço, acompanhado dos Mutantes com uma beldade roqueira em seus quadros, chamada Rita Lee.
Esses e vários outros “detalhes” do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record são absorvidos, combinados e projetados, com uma sutileza documentarista ímpar, pela lente audiovisual dos diretores Ricardo Calil e Renato Terra em “Uma noite em 67” (Brasil, 2010). O filme é uma declaração de vitalidade e experiência de uma geração que marcou época em nossa música e que se tornou possível, em um período político instável, principalmente pelo entendimento de que ideologia e estética não são indissociáveis, muito pelo contrário. O personagem principal do Festival e do filme, no entanto, é outro: a plateia intervém fortemente na cena. Trata-se de um público ativo, consciente, atencioso e visceral. Uma plateia de gente viva, portanto.
O documentário abre com Edu Lobo e Marília Medalha prestes a se consagrarem com “Ponteio” (parceria de Edu com Capinam), que desbancaria, entre outras concorrentes, a “Roda viva” de Chico, arranjada brilhantemente por Magro, componente do MPB4. Gil defende, com outro arranjo sensacional, “Domingo no Parque” – já na lida por constituir a sua Refazenda (novas e velhas sementes em uma junção “ohn”, como o próprio ex-ministro define em sua metaforização costumeira, complexamente simples). Caetano, sorriso generoso estampado ante tantos “apupos” contrários advindos da plateia, faz o “Alegria, alegria”, que depois admite como canção regular. Esteticamente, encontra-se “isolado”, junto com Nara Leão, defensores que são do pop e do uso da guitarra elétrica e do que mais pudesse vir a se somar à música brasileira. Virá a Tropicália, que rotulará Chico como um cara “velho”, aos vinte e poucos anos. Sergio Ricardo, pós-Festival, vira modinha juvenil; depois, é praticamente abandonado por décadas, embora produza, e muito – no cinema, nas artes visuais, na política e, sempre, na canção.
Toda essa efervescência, suas consequências, o futuro, nosso presente: nada escapa ao olho clínico lançado pelos diretores em um balanço histórico comovente, bem-humorado e, o que é melhor, crítico, na sua formulação/edição. Mais de cinco horas daria o filme, se levado a cabo seu projeto inicial de abordar a era dos festivais como um todo. Ao recortar os acontecimentos de um único e mui simbólico festival, sangrando da própria película, Calil e Terra optaram por fugir da superfície, chão usual da arte brasileira de hoje, perdida entre um esteticismo barato e um denuncismo sem proposta ou apresentado em estado de gritaria cega de “vozes” que se insurgem, porém, sem base consistente. A nostalgia de “Uma noite em 67”, portanto, serve a um questionamento, funda-se militante, em forma de uma saudade que se serve do passado vicejante para indagar um presente sem memória, sequioso por sedimentar um plano futuro.
Bastidores são revelados e, numa comparação com as noções atuais, dominantes, de jornalismo e música, o que tínhamos era algo extremamente antiprofissional. E que bom que era, assim desse jeito! Cidinha Campos e Reali Júnior agem como seres humanos e não jornalistas “imparciais” (robôs com um texto limitado, automimético, fazendo o serviço sujo de seus patrões escroques), tratam os artistas como pessoas próximas (e não celebridades, mitos, ídolos, figuras inatingíveis) e se dirigem ao público como comunicadores autônomos (e não meros informantes autômatos). As perguntas e as respostas são espontâneas, a gafe e o caco são permitidos e trabalham em prol da obtenção de um contato mais fluido com a fonte e o destinatário da cobertura jornalística. Na música, destacam-se: a ousadia dos arranjadores e a ausência de medinho nos músicos; muito menos aparato tecnológico e de produção; e a aceitação do risco e do erro como atalho inexpugnável para um fruir estético de feição própria e original. Ou seja, encontram-se preservadas, num campo e no outro, a dimensão fática e franca no trato da informação jornalística e a dimensão artística do fazer música.
A nostalgia se impõe ainda na constatação do quanto a suposta “profissionalização” proposta por um mercadinho emburrecido e abraçada por uma mídia conservadora nos tornou surdos e flácidos na percepção musical, com sua assepsia sonora metida a besta, o seu certinho que não toca ninguém. O que transformou boa parte da música brasileira em produto comum, fruto do mesmo trabalho alienado questionado no mundo todo ao longo da década de 1960, pertence ao mesmo caldo (de)formador de nossa cultura política, que nos tornou igualmente apáticos e estéreis.
Chico, Caetano, o próprio Sergio, não demonstram arrependimentos, nem saudosismo. Isto porque não se esconderam de nada. Não se omitiram. Fizeram. Para o bem ou para o mal, com guitarra ou sem guitarra, com guinadas à esquerda ou à direita. Sentem é falta de um corpo mais ágil, jovem; para fazer mais, talvez. Não pararam no tempo, e este também não parou – só sucumbiu com muitos sonhos, fazendo brotar nas massas o tal sono, que se estende até os dias de hoje. A nostalgia arrebatadora de “Uma noite em 67” é de um tempo de posicionamento, de opinião, até de uma certa rebeldia – e muita busca, muito encontro, muita birita, cigarro e talento gastos em prol de ideias e causas de espectro coletivo. Radicalismos – amplamente justificáveis à luz da história – à parte, o que estava em jogo eram os rumos de nossa cultura, e esta entendida num sentido maior ou, como afirma o crítico Marcello Castilho Avellar, da EM Cultura, “exatamente por (se) perceber que cultura e política são sinônimos – ou eram sinônimos”.
O sono, contudo, ora parece entrar em um estágio agônico, após o seu apogeu durante a década neoliberal de 1990. A sensação que obras como “Uma noite em 67” – e também valem citação filmes como “Tudo pode dar certo” (Woody Allen, EUA, 2009) e “Juventude” (Domingos de Oliveira, Brasil, 2008) – nos desperta é de que estamos perdendo por não fazer, travados pelo cagaço de romper com uma rotina massacrante, petrificados pelo consumo inútil do mesmo, esse fantasma que nos habita de inércia. Eis que, ao final da sessão, também nos fustiga uma esperançazinha, mesmo com tantos mortos-vivos passeando por esquinas e escritórios, embora o amor esteja tímido e a frieza persevere em derredor, de que vem coisa por aí.
*Gustavo Dumas é escritor e revisor. Colabora com o jornal de cultura e política Algo a Dizer e publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005). Também pertence ao grupo de samba Terreiro de Breque
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