Márcia Denser*
Saindo neste Carnaval meu novo livro, Toda Prosa II – Obra Escolhida, pela editora Record, uma seleção de 11 contos e três novelas escritos a partir dos anos 90, entre os quais escolhi o texto abaixo, fragmento de O Quinto Elemento – a história privada de uma mulher pública. Acho que tem tudo a ver com o momento, até porque no Carnaval sempre rola uma cena junkie da pesadíssima.
“Na minha fenomenologia as anfetaminas são o quinto elemento, e como não se fica pensando no ar que respira, nem na água ou na luz, nunca penso nelas, uma vez que a ingestão diária mínima de 100 mm é inevitável como o sol nascer todas as manhãs. Mas nem sempre foi assim. Durante meus primeiros vinte anos de vida elas simplesmente não existiam, portanto não são como o universo e a eternidade, tiveram um começo.
Aos vinte anos eu namorava um cara muito rico, gordo e careta, careta num sentido de usar umas roupas caretas, falar com sotaque da Mooca, o protótipo do paulistano babaquara de arrepiar, mas que basicamente era um maluco absoluto, alcoólatra e devastador, um sujeito radical enfim, fundamentalista em Cristo, em Camaros vermelhos, em Paris, radical em certa inocência e perversidade básicas (iguais às minhas), e naturalmente em dietas para emagrecer. Foi aí, começou aí.
Porque não existe força de vontade, percebem? William Burroughs (os mais junkies aí devem ter lido WB), viciado em heroína, disse precisamente isso: que para o Dr. Dent, de Londres, médico que o curou com apomorfina, força de vontade realmente não existe, você tem que chegar a um estado mental em que não quer ou não precisa da droga que for. O mesmo a respeito da fome, abolida pela anfetamina, um euforizante que além de liquidar a fome te deixa feliz, pleno, esperto, lúcido, maravilha.
Maravilhosamente travados passávamos o dia com meio bife e duas folhas de alface. Engolidos, aliás, com certa dificuldade. Fora isso, estava tudo perfeito para mim, já para Alvim – o namorado bem rico, gordo (mas emagrecendo a olhos vistos), maluco e fundamentalista – e que era também alcoólatra e devastador desde os 14 anos, as coisas começaram a ficar ligeiramente alteradas uma vez que ele esqueceu de abolir o litro de uísque da dieta. Porque as anfetaminas incrementam a boca seca – aliás, a sensação de boca seca é um dos únicos colateral damages do bichinho – e infelizmente no caso do Alvim, meio que beirando o letal essa associação de speed, uísque e fundamentalismo, isto é, ele ficava letal, perigosíssimo, querendo jogar o Camaro contra penhascos, isso quando não me associava a Maria Madalena, incitando apedrejamentos em praias, restaurantes, discotecas, coisas do tipo, havia toda uma liturgia.
Mas aos vinte e três anos não se acha nada engraçado, a falta de cultura exclui o senso de humor, tende-se para o trágico e fazer drama de tudo (claro que lá no fundo JAMAIS me ocorreria ficar com aquela hecatombe masculina), mas sempre fui uma garota demasiado pragmática, pois havia a questão do aluguel e da faculdade que Alvim me pagava, sem contar as roupas de Courréges e Paco Rabanne que me trazia de Paris, assim o que eram uns penhascos e uns apedrejamentos a mais ou a menos se era tudo o que eu tinha que engolir, afinal não eram apenas alucinações, isto é, de mentirinha?
Naturalmente, nessa fase das alucinações e do pragmatismo já não havia amor, porque eu apenas era jovem, mas não estúpida, e quanto a Alvim, este sobretudo era rico, o pai era rico, o avô fora rico, etc., várias gerações sem preocupações com a sobrevivência, e isto abria um abismo entre nós. O que me permitiu dar o fora sem muitos escrúpulos. Por isso, como o coveiro nos dramas elisabetanos, Alvim cumpriu seu papel introdutório e desapareceu de cena.
Quanto às anfetaminas, a incorporação metafísica duma substância à personalidade significa ingestão física diária e seu elenco de males e riscos decorrentes.
O uso continuado constela uma inexorabilidade vital que, por sua vez, forja hábitos, cria regras, inaugura e encerra fases, âmbitos, patamares e, a propósito, a regra número um manda impessoalizar fontes médicas e farmacológicas. Esqueça o médico bonzinho, amigo da família, o farmacêutico camarada e meio trambiqueiro, porque com o passar do tempo – e nisso aposto meu pescoço – o bonzinho vira dragão da maldade. Ao constatar tua necessidade, ele se torna um filha-da-puta ganancioso que transforma a quebrada de galho em relação de poder, tipo viciado versus traficante, o que não é caso.
Essencialmente, se alguém tem algo a vender é porque existe alguém que quer comprar e vice-versa, é uma transação comercial de mútua interdependência e por canais competentes, diferente da relação traficante & viciado que acontece na clandestinidade. Usuária oficial, meu caso é antes do junkie bastante modesto, literalmente do junkie careta, o que, naturalmente, é um paradoxo.
A regra dois manda não exagerar no consumo, jamais ultrapassar o patamar de pico e nunca mixar anfetaminas com outras drogas, sobretudo as incompatíveis, tipo droga suja ou droga de sonho (assim como a cocaína, a anfetamina é droga limpa, isto é, droga de poder), de evasão, drogas através das quais se abre mão do controle do ego, como a maconha ou certos ácidos, ou as que relaxam, liberam o superego, como o álcool e, nesse caso, a associação inclui desde o simples cancelamento dos efeitos até a piração generalizada (vide Alvim).
Resumindo: se você for um junkie careta, não misture as bolas e mantenha-se na dose de manutenção, ok? Certa vez, alguém me perguntou qual era a relação dos amigos, namorados, parentes, etc., com o fato de eu usar anfetaminas e a resposta é que essa relação não existe, é zero vezes zero, nula, caput. Ou eles simplesmente não sabem, ou é bom fingirem muito bem que não sabem. Porque eu nego.
Por isso, a terceira regra é a mais severa: nunca, JAMAIS, em hipótese alguma, conte a ninguém que você usa anfetaminas, nem debaixo de pau-de-arara! Tive algumas experiências amargas about. E uma vez que esse hábito não tem características anti-sociais – até porque os efeitos não são para uso externo e tampouco motivo de jactância – então amoite-se. Porque a contratransferência na contramão, a popular cobrança, é uma merda. Psicologicamente te deixa tão por baixo que funciona como um anulador de efeitos (que supostamente deviam te botar para cima), ou melhor, é O Grande Anulador de Efeitos.
Sobre ti, qualquer um julgar-se-á no direito de tripudiar, sobretudo aquela vizinha que não bebe, não fuma, pertence à Igreja Universal do Reino de Deus, curte (nesta ordem) Adriane Galisteu, Ratinho, barbecue e o Padre Marcelo Rossi. Ou a filha da vizinha que há quatro anos ganhou da mãe um aparelho de caraoquê apenas para cantar catatonicamente dia após dia, mês a mês, ano a ano, a abertura do programa da Xuxa: na cultura de massa, a imbecilização infantil é um fato. Quer nasçam com 40 ou 140 de QI, aos oito anos todas se nivelam pelo mesmo índice de imbecilização globalizada. Ou o marido da vizinha, um fundamentalista paulistano de chinelo, cujo secreto herói cultural seria um mix de George Bush, Nero e a Cuca.
Afinal de contas, eles são politicamente corretos mas você não, meu bem.”
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