(Para meu amigo Joãozinho Batista)
Um segundo,cem anos. Morri entre 5 de abril de 1871 e qualquer noite da primavera de 1908. Afogado. Ou terá sido no final do verão de 1906? Não lembro. Nem sei se morri afogado ou se morri em casa cercado de amigos e puxa-sacos. Pra dizer a verdade, tanto faz. Vale que fui – como diziam à época – “ter com Pedro”.
Até aqui, tudo dentro dos conformes.
O problema é que perdi a chance de entrar no reino da contemplação porque – para variar … – falei demais. Isso mesmo, tergiversei com o porteiro, logo com ele. Se existe alguém na terra e no céu que sabe aonde o galo canta, esse alguém é São Pedro.
Adquiriu as chaves por mérito, reconhecimento e culpa. Impossível não identificar a tristeza no semblante do guardião. Um remorso que lhe escorre das pálpebras inchadas até chegar à terra em forma de tempestades, transbordamentos. Antes, porém, a dor da negação percorre suas longas barbas. De onde brotam serpentes que, mais dia menos dia, irão se enroscar em nossas almas e nos carregarão para a devida quinta. Isso eu lembro:
– Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? – Perguntou-me.
Eu sabia – de experiências vividas noutras quintas – que reconhecer as faltas podia ser uma forma de abrir as portas do céu. Tinha consciência que o perdão era moeda eterna e que o arrependimento – segundos os manuais – purificava almas. Em vida, cultivei boas amizades e fui um homem avesso a polêmicas, cordato e premeditado – e às vezes negligente por uma questão de sobrevivência. Até certo ponto honesto e oblíquo, íntegro e zombeteiro. Um ateu diletante que se passava por carola, com vocação para a gaiatice e a troça. Eu era um grande filho da puta. Tal condição, bom que se diga, alcancei por esforço e mérito próprios.
Meu estilo, minhas estratégias. Nos saraus, esse conjunto (cá entre nós, mambembe e capenga) funcionava a contento, uma vez que meus pares eram pouco exigentes e a recíproca nos beneficiava – afinal eram meus pares. Na verdade, estávamos mais concentrados em nossos pequenos interesses e chicanas do que nas revoluções propriamente ditas. Se havia algum deslumbramento, era – também – algo sob medida. Além de hipócritas, encantadores. Ali perto da rua da Alfândega, quase na Candelária, passávamos o tempo jogando cartas, penhorando nossas almas e descontando as respectivas promissórias e indultos. Tudo recebido em vida! Aprendi a crer tanto nos milagres como no arrocho dos homens. Louvado seja Nosso Senhor! Assim nasci no Livramento, cresci agregado e me dei à vida, e ganhei mais do que merecia.
Todavia, considerava-me um miserável. Decidi ir à forra e ninguém jamais soube respirar e compreender os ares e solturas do Rio e especialmente da Rua do Ouvidor como eu, cambista desde a mais tenra memória: conchavei com o diabo e fui ungido nas procissões de São Francisco de Paula que, à época, davam-me a impressão que não acabariam nunca. Ainda que a contragosto e na contramão, seguia os beatos e cumpria meu destino de mestiço, gago, epilético, original pelas tabelas, irônico e filho da puta incorrigível. Tive problemas de saúde. E aprendi a ruminar. Nessas ocasiões não fazia o menor sentido mentir para mim mesmo. Ah, como era bom ruminar, às vezes melhor do que mentir. O bafio da ironia fina, mesclado a uma elegância de entrelinhas me catapultou da condição de filho de costureira a presidente de confraria, da mesma forma passei de mestiço a profeta.
Alguns me tinham como bruxo. O que eu podia fazer senão agradecer a deferência, e tirar coelhos da cartola? Mas, aqui entre nós, eu estava mais para tropeiro do que para feiticeiro. O lucro se aufere na hora da compra, e o segredo da vida é pechinchar! Nesse diapasão, pois, alforriei meus escravos antes da abolição. De modo algum para alegrar-lhes o espírito ou libertá-los das cangas, tampouco pelos sopros da prestidigitação ou pela vidência que me atribuíam. Se o fiz, foi com o intuito de me distrair. Pura sacanagem. Queria ter o privilégio de pagar uma ninharia pelos petelecos e cascudos aplicados com volúpia (e um pouco de comiseração), coisa de seis mil-réis por ano. Não que forçasse os negros ao suplício, apenas os fiz enxergar que a liberdade das ruas lhes seria menos vantajosa que o amor desfrutado em cativeiro. No frenesi, aproveitei para abolir os sofismas da escravidão da minha retórica. Eia!
Feitiço? Claro que não, apenas comichão. Os negros de casa apreenderam o significado do termo igualdade escovando minhas botas. Um ótimo negócio. Dei-lhes, antes de qualquer cousa, a alternativa de implorar pelo castigo. Ah! Eles imploravam! Eu descia-lhes o relho e os cavalgava.
Fui um homem bom, generoso e convincente.
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– Não me diga? – interrompeu São Pedro.
– Tanto que, depois de alforriados, os negros não me abandonaram e aos meus confrades e aos confrades dos confrades não restaria alternativa diferente de dar – igualmente – o lombo ao relho e lustro não somente às minhas botas…
– Prossiga.
– Sim , meu santo. Os puxa-sacos e os filhos e o netos e bisnetos e as quatro gerações seguintes …
– Quatro gerações?
– Ou cinco, seis gerações. Perdi a conta. Sei que esses caiporas e os filhos e os netos e as gerações posteriores de caiporas lustrariam meu gênio ao longo do século seguinte e mais uma parcela de tempo que, sem embargo de presunção, chamarei de eternidade.
– Jura?
– Juro sim, meu santo. Veja lá o futuro. A eternidade tem endereço certo e sede própria. Situa-se à Avenida Presidente Wilson, 203, Rio de Janeiro, perto da Cinelândia. Aberta de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h.
– De segunda a sexta, das 9h às 18h?
– Claro! Qualquer um pode ir à eternidade.O convite é extensivo à sua santidade e aos senhores anjos, arcanjos e querubins. Visitas escolares deverão ser agendadas com antecedência. Uma vovozinha sorridente e simpática, mme.Pinõn, irá recebê-los com bolinhos de chuva, muita educação e cara de pau. Pergunte por mim.
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– Como eu ia dizendo, meu santo…
– Não sou “teu santo”, meu chapa.
– Mil perdões. Mas, como eu ia dizendo, acabei convencido de que praticava a justiça e a modéstia.
– Impressionante…
– Não bastasse, confrontei (de leve, na diagonal …) os positivistas e os republicanos da época! Eu era foda! Se tivesse tido a sorte de nascer 110 anos depois num lugar que prestasse, bem longe do calor e dos mosquitos da Gamboa, os senhores aqui no céu e lá na terra e quiçá nas quintas dos infernos me conheceriam como Michael Jackson.
– Culpado ou inocente?
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A coisa tava braba pro meu lado. A bagagem trazida da terra, digamos assim, a bagagem me sugeria que, à guisa de álibi e um pouco por solidariedade a Pedro (o traíra), eu não deveria me imiscuir das culpas nem tampouco me esquivar de ser prestativo, falso e indulgente. O céu era o limite.
– Culpado ou inocente, filho?
Ah, as culpas – pensei comigo mesmo: – sem elas eu não teria me arriscado no mar aquela noite, sem as culpas não teria chegado aos molhes do forte e não teria saído do ventre de dona Maria Leopoldina… ah, as culpas que sempre me davam tesão e às vezes operavam milagres …
Então disse a Pedro:
– Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado…*
Os anjos que voavam ao redor pousaram para me ouvir. Pedro apagou as luzes e os afugentou como se fossem mariposas. Daí os merdinhas se escafederam e foram para o futuro ter ao redor e/ou em vorta de uma lampida de um tal de Adoniran. Não entendi direito. Sei que o céu, imediatamente, transformou-se num breu (mas ainda era céu, eu juro…) e lá ficamos eu, Pedrão e as serpentes que escorriam de sua longa e milenar barba. Uns quarenta minutos ou quarenta anos se passaram.
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Aqui para os leitores do Congresso em Foco, faço uma confissão: meu desempenho não foi dos melhores, bem ao meu estilo, aliás: “na diagonal”. Pedro notara a afetação.
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Depois de quatro horas ou quatro décadas, eu ainda engolia água. Era como se tivesse acabado de morrer. Afogado no mar grosso, eu e o corno do Bentinho. O ar ainda me faltava!
Uma coisa, queridos entes encarnados, vos digo: não é nada fácil desgrudar-se dos hábitos da terra assim, na primeira audiência. Admito que o estilo talvez fosse meu pior vício, porém, ao mesmo tempo, era minha única garantia. Cazzo! Qual outra prova de idoneidade, ou mais, de identidade … eu poderia apresentar naquela situação? Uma assinatura que na terra abria portas, eu acreditava nisso, juro que sim(…)
Mas era o céu, e eu estava na presença de Pedro, o porteiro de Deus. Uma oportunidade única. Aquilo ali não era nenhuma entrevista com o Athayde Patrese, digo, Edney Silvestre… pera aí, jabuti, jaburu, jabulani… enfim, quero dizer que não se tratava de nenhuma marmelada nem de nenhum rega-bofe organizado pela simpática mme. Piñon. Os querubins haviam preparado uma festa dos diabos para me receber, e – segundo fui entender tarde demais- eles não queriam saber de minha oratória nem tampouco dos meus anacolutos ultrapassados, nem se interessavam pela porra do meu estilo, nem eles e muito menos Pedro … o velho pescador que me dava linha para ver até aonde eu iria me enrolar: e eu fui longe, bem longe.
Abusei da retórica, e jurei que meus tesouros jaziam escondidos no morro do Castelo.
Garanti a Pedro, sinceramente (…) que em vida fui amigo do dinheiro,mas trazia o mistério comigo.
– Creio no mistério.
Achei que era o bastante para impressionar o leão-de-chácara que cofiava a barba grisalha forrada de serpentes. Não é todo dia, convenhamos, que alguém bate às portas do céu e sugere uma cor diferente, uma nuance. Pedro tinha diante de si alguém que acreditava nos mistérios, e os confessava! Eram meus – eu disse – e jaziam no Morro do Castelo….
O problema é que São Pedro andava meio de saco cheio. Os séculos, as décadas e os dias iam e vinham ao sabor das nuvens. Quando morri, creio que na década de setenta (estou quase certo, anos setenta…), almas paraguaias chegavam aos retalhos, postas e borbotões. Um período muito confuso. Os arcanjos-assistentes não davam conta do sotaque e das harpas que nossos hermanos paraguaios traziam consigo. E o pior: os responsáveis pelo açougue éramos nós, brasileiros, além dos argentinos e uruguaios. Um massacre. Lembro que uma meia dúzia de anjos, que bordejavam acima dos querubins e dos arcanjos, ameaçaram amotinar-se diante do risco de o céu virar uma churrascaria de beira de estrada. O começo da década, estou falando de 1870/71, não foi a melhor época para matar nem para morrer. Eu que morri longe da carnificina, afogado no mar do Flamengo, sei do que estou falando. Acho que sei. O tempo de Pedro era infinito e curto também.
– E aí?
Bem, aí eu disse a Pedrão que a sensação era de afogamento, mas que eu podia perfeitamente ter morrido no leito de casa quarenta anos depois, cercado de amigos e puxa-sacos, sabe-se lá, pelo sim pelo não, reiterei que mesmo sendo monarquista, eu não concordava com a carnificina dos 70, e que havia perdido a saúde, as ilusões, os amigos e até o dinheiro, mas não havia perdido a crença nos tesouros do Castelo. Sim, era minha crença quando menino e na mocidade também, e eu havia morrido com ela:
– Mistérios, seu Pedro, digo São Pedro, que não pertencem nem ao céu nem a terra.
Nesse instante, as serpentes começaram a se despregar de sua barba e eu achei que ele já estava perdendo a paciência comigo. Mesmo assim, prossegui:
– As grandes riquezas dos jesuítas estavam escondidas ali no morro do Castelo, desde criancinha acreditei nesse mistério: ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, guimbas manchadas de batom (êpa!, a guimbas ficariam para a próxima vida) …corais, as dobras e os dobrões e um Santo Inácio de ouro maciço, o senhor precisava ver! Os olhos de brilhantes do santo piscavam para mim nos meus sonhos e os dentes de pérolas diziam que sim…
– Pára – interrompeu Pedro. Queres que as serpentes virem miojo? Vou repetir a pergunta novamente, xarope. E não queira me enrolar! Oquei?
– Eu, xarope?
– Sim, tu mesmo. Pela última vez. Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra?
De fato, as víboras se desgrudavam da barba e entravam pelas narinas, saíam da boca e das orelhas e envolviam o pescoço do santo de modo que lhe tiravam o ar e quase o enforcavam, aquilo, de certa forma, fez com que eu me sentisse um pouco responsável pelo Butantã em que havia se transformado o céu de Pedro.
“Perla!”
Ele interrompeu, e disse “Perla” ?
– Pois não, eu espero.
– Não é contigo animal, mas espera assim mesmo. O arcanjo-secretário anotou o nome, o local e a data de nascimento: Perla, Caacupé, Paraguay, 1952.
Pelo que entendi, era a resposta que os céus, via Paraguay, dariam ao Brasil dali a 70 ou 100 anos, acho que sim. Também ouvi alguma coisa a respeito de uma hidrelétrica e de um bispo ou presidente garanhão que cobraria essas e outras dívidas. A lei da causa e efeito.
– Chitãozinho?
– Ouves demais! Esse bafio vem do inferno, não se meta!
Tudo bem, não era da minha conta. Não obstante, à medida que meu estilo se aprimorava, dezenas de serpentes brotavam de todos os orifícios do santo e lhe escorriam desde a barba até os dedos dos pés e, de lá, infiltravam-se em nuvens grossas e negras para logo em seguida caírem na terra em forma de trovoadas, incêndios, calamidades.
Teve uma meia dúzia de serpentes que entrou no céu por uma fresta que ficava logo atrás da poltrona de Pedro, eu vi, juro que vi, mas resolvi não falar nada para não piorar ainda mais as coisas pro meu lado, então eu disse:
– Era o mistério que me fascinava. O mistério, sempre o mistério.
– Pois bem – sentenciou Pedro – Se cultivaste os mistérios em vida e insiste com eles depois de morto, azar o seu. Só me resta despachá-lo a ti e a teus mistérios e anacolutos de volta à terra.
– Puta merda!
– E nem pense em voltar aqui antes de decifrá-los. O Próximo!
* Texto escrito a partir de algumas crônicas de Machadão de Assis, o mestre do gênero.
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