Em 2009, um candidato ao maior cargo público do Brasil disse num comício que a Itália era uma bela democracia. A menção à beleza poderia se referir à magnífica combinação de lagos, campinas e montanhas do território italiano, ou a formosura ímpar de suas grandes pinturas, esculturas, concerti grossi, óperas e filmes famosos. Mas estava sendo apreciada (segundo parece) a beleza do sistema político. Como conceitos estéticos aplicados a fenômenos sociais podem produzir algumas inconsistências, é bom nos municiarmos com informação na qual se fale especificamente dos dotes estéticos dos sistemas políticos. Democracia é um sistema de governo representativo, eleitoral, de renovação cíclica, mas um estado é também um aparato judicial, um executivo com seus vários ministérios, e um sistema da manutenção da ordem e da segurança.
É verdade que existiam já alguns livros escritos por pesquisadores e eruditos tanto em história, como em “ciências” políticas e em sociologia, vários deles de singular rigor e abundância de fontes. Muitos, porém, exigem leitura cuidadosa, que requer muita vontade do leitor. Além disso, as autoridades italianas, desde os deputados e magistrados até os chefes de Estado, costumavam ver nesses escritos certa má vontade com a “bela democracia”. O argumento fundamental é que os autores estavam influenciados por idéias estrangeiras, que eram terroristas enrustidos, ou que não conheciam bem a realidade do país (apesar de muitos deles viverem dentro de seu território).
O clássico e ameno livro Italy, a Difficult Democracy de T. Spotts e T. Wieser teve sucesso entre os especialistas leitores de inglês, mas nunca foi traduzido para o italiano, talvez porque o governo peninsular entendeu que “difficult” era um termo pouco respeitoso, que colocava em dúvida a democracia italiana. O mesmo aconteceu com a abundante obra de Anna Cento Bull (especialmente com Italian Neofascism. The Strategy of Tension and the Politics of Nonreconciliation, Berghahn, Oxford and New York, 2007). Já Daniele Ganser (Nato’s secret armies: Operation Gladio and Terrorism in Western Europe) circulou amplamente na Europa, mas seus dados específicos sobre a Itália sempre foram ignorados pelo stablishment peninsular, a tal ponto que informações bem conhecidas e desclassificadas há duas décadas são ainda olhadas como excentricidades, e às vezes, como mentiras.
Mas algumas coisas mudaram. Nicola Rao (nascido em 1962), escritor e jornalista, com simpatias moderadas pela direita, tinha escrito recentemente alguns livros sobre o neofascismo da série A Fiamma e a Celtica (A Chama e a Cruz Céltica), onde expunha a ação desses movimentos de maneira bastante objetiva. Há apenas duas semanas, em 11 de outubro, o autor lançou na Itália seu novo livro Colpo al Cuore, onde descreve os últimos 500 dias das Brigadas Vermelhas, o grupo de esquerda armada que sequestrou o premiê Aldo Moro.
Nele, porém, o relato começa com o último sequestro do grupo: o do General James Lee Dozier, o segundo mais importante oficial americano destacado na Europa, vice-chefe da OTAN, e figura essencial na Operação Gladio, a organização de terrorismo de estado formada pela aliança entre a CIA, o governo Italiano, as Forças Armadas e de segurança desse país, os serviços secretos, os grandes grupos de empresários (como o Instituto Alberto Pollio), as sociedades secretas ligadas ao Vaticano (como Propaganda Due), e os diversos grupos neofascistas, que forneceram a “mão de obra” para realizar os 11 maiores ataques terroristas da história da Europa. (Um deles, acontecido em 1980 na estação de trem de Bolonha, custou 85 vidas e mais de 200 mutilados).
Neste livro, cuja leitura recomendo a qualquer leitor curioso pela política internacional (mesmo não especializado), Rao faz um trabalho detalhado de investigação, utilizando especialmente o depoimento de um ex-delator, membro das Brigadas, Antonio Savasta, de um alto oficial da repressão, o comissário Salvador Genova, e alguns outros diretamente vinculados ao sequestro de Dozier e à repressão contra seus captores.
Rao mostra-se moderado com seus comentários, e embora sua visão do problema seja crítica contra as Brigadas, mantém suficiente imparcialidade quando descreve a principal (e quase única) metodologia que a polícia, o exército e os serviços secretos usaram contra os membros das Brigadas: torturas de todos os estilos e grau de intensidade, aplicadas contra pessoas de qualquer idade, sexo e estado físico.
Rao não se pronuncia sobre aspectos humanitários nem éticos, mas apenas descreve, de maneira sóbria, sem pieguice nem maniqueísmos, os recursos usados pelas forças repressivas para dobrar seus cativos. O livro está escrito num italiano simples, que no Brasil muitas pessoas entenderão facilmente, e pode ser lido, para quem não gosta de política, como um romance policial. Só que não é realmente um romance: é a crônica dos métodos medievais usados na Bela Democracia, aquela na qual os magistrados e políticos negam que se violem os direitos humanos. Mas, Nicola Rao é um homem do sistema, e não dá para pensar que ele tenha algum interesse em prejudicar os patrões desse sistema.
Colpo al Cuore foi editado pela casa Sperling & Kupfer, que pertence ao grupo editor de Silvio Berlusconi, e apareceu em 11 de outubro de 2011, tem 208 pp., e IBSN 978882005126.
Os que decidam lê-lo entusiasmados por ser escrita por um autor de centro-direita, não se iludam. Ele não faz propaganda da Bela Democracia! Revela apenas o que todos sabiam, mas que agora é confirmado, pela primeira vez, pelos principais protagonistas.
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