Há dez anos eu era outro cara, meio que perdido e sem rumo, apressado e muito parecido – pasmem … – comigo mesmo, aqui e agora. Encontrei Mário Bortolotto numa das muitas baldeações que fiz pelo caminho. Ele estava escorado num balcão de bar, lia um pocket da L&PM e usava umas roupas esquisitas. Em breve, subiríamos no mesmo vagão:
_ Tudo bem, Mario?
_ E aí, Mirisola?
Essa viagem surpreendente já dura dez anos. Continuamos. Indo. A diferença é que ele desce nas estações sempre do mesmo jeito e, apesar das merdas que encontra do lado de fora, volta para cabine cada vez mais íntegro e sabedor do seu destino: trôpego, baleado, lúcido. Mario – bem diferente de mim – conhece o trajeto. E isso, a meu ver, é mais vital e necessário do que tentar adivinhar os sobressaltos da próxima parada – uma questão de lógica, de causa e efeito. Bortolotto é mestre em ficar na dele.
Essas imagens de trens e plataformas parecem um pouco desgastadas, jamais pensei que recorreria a elas. Confesso que o faço somente para reforçar a idéia de que não é qualquer um que sabe ficar no seu canto, de bituca, observando. Em primeiro lugar, o cara tem de ser disciplinado, depois tem de aprender a não se dispersar e – se possível – não misturar vinho com uísque. Pronto, cheguei aonde queria. Mario Bortolotto sabe cultivar a paciência (até na hora de perdê-la). Mesmo assim, ele é muito paciente. Sobretudo com as almas penadas que encontra pelo caminho. E é nesse ponto que começa o livro. Porque, além de carregar essas almas consigo, ele faz blues, joga bilhar, as conduz e as ilumina, e agora também faz poesia de ótima qualidade com elas.
Depois de ler Um bom lugar para morrer *, o livro de poesias que ele escreveu exatamente nesse período que viajamos juntos, tenho a sensação de que não estarei tão perdido quando chegar na estação final, embora continue misturando pôr do sol e confusão, e continue apressado e insistindo na mesma urgência e nos malditos erros de sempre, mas isso… bem, isso é problema meu.
Quero dizer que é bom ter o Mário no mesmo vagão, um cara que fica lá no canto dele. Sempre ligado, e rindo de si mesmo e tirando uma onda da cara, digo, do “si mesmo” dos outros. Pois bem. Nesse Um Bom Lugar Para Morrer, ele inventou uma espécie de compaixão cristã meio punk e nada lacrimosa “que venham a mim os que estão desesperados, os que nunca se arrependem (…) tô ai pra assumir todos os pecados”. Bom dizer que todos os pecados que percorrem esse livro podem ser lidos dessa forma: o troglodita perdoa, acolhe e ao mesmo tempo blasfema, disfarça, chama pra porrada e vai pra lona, em seguida ele imagina um cachorro que o receba sorrindo com um latido e brinca de apertar as tetas da amiga malucona.
Oquei, tudo dentro dos contrapontos e tensão necessárias à existência de qualquer obra de arte, até mesmo para dar um tempo na idiossincrasia que é fazer blues num país cujos cachorrinhos irão primeiramente sorrir latindo para o Roberto Carlos.
Outra coisa e a diferença. Bortolotto é um autor que se recusa a levar cachorrinhos para passear. Não é o tipo de cara que precisa repetir “Jesus Cristo,eu estou aqui” (aposto que o filho de Deus o tem em alta conta por causa disso).
Portanto, cada macaco no seu galho. Isso significa que o autor de Um bom lugar para morrer não poderia correr o risco de levitar em público. Não depois de ter sobrevivido a quatro tiros à queima roupa. Outro milagre seria canastrice. Daí que ele dispensa os efeitos especiais e chama seus demônios para “ter um particular” consigo e com seus leitores. Não há balas perdidas nesse livro. Os tiros são disparados do mesmo coração que aloja as balas e bombeia chumbo para o resto do corpo. Quem quiser pode chamar de poesia.
Nos intervalos do bangue-bangue, uma outra guerra. Na sua quitinete, e agora com as mulheres. Elas irrompem no meio das tempestades, com tinta barata escorrendo dos cabelos (as imagino ruivas); algumas enfeitiçadas e cambaleantes, lambuzadas de lágrimas, batom e vômito, outras orgulhosas de suas transparências, a maioria Beth Blue – fodidas e mal pagas, tanto faz, a lei é a mesma para todas: enquanto não aprenderem a equação básica da solidão (do “para sempre”) elas não terão vida fácil com o autor: “E ele queria entrar dentro dela/ e ficar lá o resto de sua vida/ não para ser um, mas para ser dois/ definitivamente e de uma vez por todas/ os dois”.
Um bom lugar para morrer é a declaração de amor de um misantropo compassivo no meio de uma multidão de zumbis alucinados (como se isso fosse possível …). Será? Ora, claro que é.
Tem um poema lá, cujo título é Ópera dos pombos sem destino que prova que sim. Quando o sujeito cultiva pombos-correios estropiados que se desviam das vidraças, mas que não foram 100% abandonados por Deus, tudo é possível. Esses pombos piolhentos não tem destino mas possuem endereço certo para morrer, esse é o ponto. Sabem por quê? Porque somente um poeta misantropo e generoso conseguiria – no meio da fuligem e da degeneração – imaginá-los assim: brancos e puros. Pombos perdidos que se recusaram a saber o caminho, e que, por fim, sintetizam o livro.
Nem seria preciso dizer que, apesar da bela imagem, o tempo dos pombos já era e o nosso tempo também já se foi: aliás, o poema Tempo de trégua incluído estrategicamente no começo do livro não deixa a menor dúvida com relação a isso.
Os pombos que Bortolotto cultiva no sótão voam disfarçados de morcegos e uivam feito coiotes, jogam bilhar de madrugada, brigam no bar e chegam em casa dilacerados querendo se livrar do amor: “Tem gente que ama muito/ Mas depois quer se livrar do amor/ Pra conseguir um novo amor”.
Todavia, pombos não são morcegos nem são coiotes. Eles jamais conseguirão pousar em qualquer lugar diferente do sótão do poeta. Um lugar devastado, úmido e cheio de compaixão. O livro trata dessas aves estropiadas que se recusaram a saber o caminho, mas que – apesar de tudo – encontraram, nas palavras de Mário Bortolotto, um bom lugar para morrer. Não é nada pouco. O destino que qualquer livro honesto de poesia deveria pretender, eu acho.
* Um bom lugar para morrer. Editora Atrito Art. Rua João Pessoa, 103. Londrina-PR Tel: (43) 3344-5998. Email: atritoart@sercomtel.com.br
Você também encontra o livro no Sebo do Bactéria ou com o próprio Mário Bortolotto.
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