João Capiberibe*
No começo, eu não ousava me aproximar, ficava de longe torcendo pelos que sempre levavam a pior e não se emendavam. Ia e vinha, lá estavam eles a desafiar os "homens" que jogavam os cavalos para cima de manifestantes a pé e desarmados.
A reação não demorou. As bolinhas de gude no asfalto provocavam tombos espetaculares, minando o moral da tropa repressora, ao mesmo tempo em que levantava a estrepitosa torcida que se aglomerava nas calçadas e janelas dos edifícios para aplaudir e jogar papel picado nos que ousavam desafiar a ditadura.
Era tempo de Travessia nas noites de Belo Horizonte, os bares transbordavam de gente, a maioria, protagonistas dos acontecimentos do dia. Tudo era iminente, a ditadura parecia balançar, mais uma ou duas manifestações e pimba! Os militares voltariam aos quartéis. Relatos, seguidos de inflamados debates, sobre os rumos do movimento ganhavam a madrugada ao som de muita música popular brasileira, às vezes cantada, às vezes maltratada.
Lá pelas tantas todas as vozes se uniam e o bar inteiro cantava a música de Milton Nascimento:
“Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito,
Hoje eu tenho que chorar”
A torcida foi minguando. Das janelas e sacadas dos edifícios parou a chuva de papel picado. Os "homens" deixaram os cavalos pastando, vinham para avenida protegidos e armados até os dentes. Seguiam o rastro de um animal metálico esquisito chamado Brucutu, que esguichava violentos jatos d’água, varrendo quem estivesse pela frente: manifestantes ou simples transeuntes. Os ventos estavam mudando de direção e nós sem lenço, sem documento, como cantava Caetano Veloso:
“Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou…”
Resistentes, brotavam do nada, vindos sabe Deus de onde, as centenas se aglomeravam em um ponto e hora que só eles sabiam. De repente, alagavam a Afonso Pena e marchavam, sem lenço e sem documento, com as armas de sempre, faixas e cartazes com as frases: ABAIXO A DITADURA. O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO.
A temperatura política esquentara, a noite ficava menos descontraída e mais tensa. A música de fundo era outra, também de Caetano. Refletia ansiedade e rebeldia, um incontido desejo de liberdade:
“E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir”
A ditadura faz sua primeira vítima entre os estudantes. Edson Luís de Lima Souto é assassinado com um tiro no peito no Rio de Janeiro, durante uma manifestação contra o fechamento do restaurante Calabouço: "Mataram um estudante, podia ser seu filho". Essa frase ecoou, de norte a sul do país, inusitada indignação política, levando os estudantes a organizar grandes manifestações nas principais capitais brasileira, culminando com a passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro. A ditadura reagiu com intolerância, reprimindo com violência, prendendo e assassinando mais estudantes.
Àquela altura, já não era apenas o simpatizante que olhava os acontecimentos a distância. Aos poucos, fui abraçando aquela causa que não compreendia lá muito bem, porém já conseguia separar as coisas, de um lado os que tinham sede de justiça; de outro os opressores. O cerco ia se fechando, tudo era proibido, tudo era perigoso, mas não dava para engolir, não dava para ficar na praça dando milho aos pombos. Era preciso fazer alguma coisa, era preciso entoar e seguir a canção de Vandré:
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer…”
Foi a senha para a radicalização, se tudo era proibido, então o que fazer? Cruzar os braços? Desbundar? Como se dizia na época. Engajar na luta armada? Que mais? Ah, sim! Mergulhar na meditação transcendental em uma comunidade alternativa.
Decido continuar, mesmo sem saber atirar, abracei a luta armada. Troco Minas pelo Pará, onde me dedico integralmente à militância. Vou ao Rio de Janeiro para um encontro com Carlos Marighella, líder da ALN (Ação de Libertação Nacional). Na volta por Belo Horizonte, mais dois estudantes se integram à organização, Élson Martins e Tito Guimarães Filho, que de armas entendiam tanto quanto eu.
No meio desse turbilhão, em uma noite de Natal, depois da Missa do Galo, sentados em uma praça deserta, no meio do mundo, ouvindo a música que se transformaria para sempre na trilha sonoro de nossas vidas Here, there and everywhere", dos Beatles:
“To live a better life
I need my love to be here”
Eu e Janete selamos um pacto de amor e luta, na Linha do Equador em Macapá, na virada da década de sessenta. De lá para cá, de mãos dadas, vivemos cada momento, compartilhamos cada emoção. Na mesma época, mais dois voluntários, sem qualquer aptidão às armas, se incorporam à luta, Aldoni da Fonseca Araújo e Leonardo Gazel.
Dos porões da ditadura consigo escapar graças a Janete e a um grupo de amigos. Antes de completar um ano de prisão, em uma noite quente do final de julho de 1971, vestido de médico, deixo o hospital em Belém pela porta da frente, dando boa noite aos meus carcereiros. Foram 25 dias pelo Rio Amazonas até Rondônia, onde atravessamos para Bolívia e demos de cara com uma quartelada sangrenta.
Nessas andanças éramos três. Artionka, que nascera quando estávamos na prisão, nos fazia companhia. Ficamos clandestinos em Cochabamba esperando acalmar a tempestade política. Fizemos amigos entre os índios Aymaras, com quem aprendemos sua cultura, provamos sua bebida milenar, a ticha, e nos deixamos levar pelos sons das Quenas e Charangos, como El condor pasa, música andina de Daniel Alomia e Julio de La Paz:
“Ó, majestoso Condor dos Andes,
Leva-me ao meu lar, nos Andes, ó Condor
Quero voltar à minha terra querida e viver com meus irmãos Incas”
Foram três meses de espera. Em um lance perigoso, conseguimos cruzar a fronteira, chegar ao Peru e depois ao Chile, de Allende, onde recebemos asilo político e, para completar a felicidade, ganhamos os gêmeos Camilo e Luciana, embalados por Gracias a la vida, de Violeta Parra:
“Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me há dado la risa y me há dado el llanto.
Asy yo distingo dicha de quebranto”
A experiência chilena de construção do socialismo pela via democrática termina em tragédia, com milhares de mortos e desaparecidos, incluindo o assassinato de Allende.
Após quatro meses vivendo num campo de refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU), com passaportes da Cruz Vermelha, deixamos Santiago com destino ao Canadá, onde permanecemos por quatro anos, estudando e convivendo com a cultura política e a música que marcou a chamada revolução tranqüila na província de Quebec, Mon Pays, de Gilles Vigneault:
“Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’hiver
Mon jardin ce n’est pas un jardin, c’est la plaine"
No começinho de 1978 cruzamos o Atlântico com destino a Moçambique. Lá íamos nós, contribuir na reconstrução de um país arrasado por uma longa guerra colonial. Às vezes, me surpreendia imaginando o Brasil de 1825, três anos após a independência, e era bem isso. Chegamos a Moçambique três anos depois de sua libertação do domínio colonial português. Uma experiência e tanto.
Foram dois anos de trabalho e aprendizado e, também, de uma enorme expectativa com a volta ao Brasil. Havíamos iniciado a contagem regressiva com a aprovação da Lei de Anistia, em agosto de 1979. Aproximava-se o fim do longo exílio.
Vivíamos na cidade de Maputo, no terceiro andar de um prédio de apartamentos, situado na Av. Friedrich Engels, com vista para a Baía de Moçambique no Oceano Índico. Naquele dia, antes de estacionar o carro, vi Janete na janela, acenando e pulando com uma fita cassete na mão:
– Corre! Corre! Chegou a música da Elis, fala do Betinho, fala da volta. É a música da volta ao Brasil.
Subi as escadas voando, à tarde não fui trabalhar, ficamos horas ouvindo a música cantada pela Elis, delirando com a volta; daí pra frente não se falou mais em outra coisa até o dia do embarque:
“E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Prá noite do Bra…sil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete”
Na bagagem trouxemos os discos de um angolano, em suas músicas, o semba, precursor do nosso samba, e na sua voz dava pra sentir a alma, os sentimentos e a dor da mãe África em Mona Ki Ngi Xica, composição e interpretação de Bonga.
O romantismo da volta começou a se desfazer já na chegada no aeroporto do Rio de Janeiro. Fomos os primeiros a desembarcar, apartados e conduzidos para uma sala da Policia Federal, onde respondemos um questionário quilométrico.
Sem problema, o importante era que estávamos de volta e sem grandes ilusões. Ainda tínhamos muito que caminhar rumo à democracia, opa! Ainda temos outro tanto a caminhar, não passou, mas vai passar. Basta continuarmos resitindo e ouvindo o Chico:
“Vai passar nessa avenida um samba popular…
Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval”
Nossas escolhas e desafios nos levaram a viver situações extremas, primeiro lá atrás, quando da nossa prisão ou seqüestro, no dia 7 de setembro de 1970.
O segundo, 33 anos depois, na "democracia operária" do presidente Lula, o Tribunal Superior Eleitoral (TES) decide rever uma decisão do TER-AP e me reservar um "lugar na história das eleições do país", como primeiro senador cassado, confirmando a acusação da compra de dois votos feita pelos meus adversários. Por dedução, Janete também teve seu mandato de deputada federal cassado pelo mesmo tribunal. Assim que, de repente, o presente trouxe de volta o passado.
*João Capiberibe, 60 anos, ex-prefeito de Macapá, ex-governador e senador do Amapá, é vice-presidente nacional do PSB.
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