Tinha acabado de assistir Bastardos inglórios, o novo filme do Tarantino, estava anestesiado pela piada e pelos gorós que entornei depois da sessão. Fui dormir. Lá pelas duas horas da manhã, começou o tiroteio no Morro dos Macacos. Moro no Grajaú, quase na Visconde de Santa Isabel. Longe da linha de tiro (até agora), mas perto, muito perto do barulho.
Quando morava em Copacabana, vizinho do Pavão-Pavãozinho, presenciei uma troca de tiros. Foi algo intenso também, porém durou uns 15 minutos. Em seguida, removeram os presuntos, limparam o sangue das calçadas e a vida prosseguiu alegre na maravilhosa cidade do Ruy Castro. Quinze minutinhos só. Naquele final de tarde, eu lembro, o sol caprichou ao se recolher nas pedras do Arpoador. A turminha do tai-chi estava lá, eles e os deslumbrados de sempre, que fazem parte do presépio que é aquela paisagem. Tem uns que batem palmas pro pôr do sol.
Há quase um ano que mudei pra Zona Norte. Dessa vez, bem longe do presépio, o bangue-bangue varou a madrugada. Eu me revirei um pouco na cama – tive alguns flashes dos bifes à parmegiana que comia no Clube Rio Branco (idos dos 80 lá em Andradas-MG) – e, meio que engazopado, levei meu sono adiante, não dei muita bola porque achei que os bifes eram um capricho do meu cérebro desgovernado pelo sono, sei lá, uma associação ou um prolongamento da carnificina do filme do Tarantino, qualquer besteira alhures, ficção misturada com dèja-vu, essas coisas inglórias & bastardas que acontecem com nosotros no meio do sono, depois de uma sessão de cinema, de uma certa idade e de umas doses de uísques nas ideias. Vou dizer, dormia bem, apesar do barulho.
Às seis horas da manhã, levantei pra dar a mijadinha de praxe que me garantiria o sono até mais tarde, e não consegui voltar pra cama: a troca de tiros continuava intensa. Lá e cá. Era pra valer. Esperei até as oito, e liguei pro meu amigo Ricardinho Lisias, em São Paulo. Ele ouviu a guerra do outro lado da linha, e me convidou para o lançamento do seu livro, dia 28 outubro. O tiroteio se prolongou até as dez horas da manhã. Só podia ser uma guerra. Quando desci, o zelador me disse: “Morreu mais de trinta”. Eu, diferentemente do secretário Beltrame, que logo em seguida diria que se tratava de um problema localizado, pensei comigo mesmo: “Ih, caramba: será que vai ter pôr do sol no Arpoador? O pessoal do tai-chi vai conseguir manter o esfíncter relaxado depois dessa?”
Tremenda besteira da minha parte, convenhamos. Há muito que eu havia deixado a Zona Sul. Por que essa saudade de um Rio de Janeiro que não existe mais? O Ruy Castro e os lordes ingleses da comissão olímpica – pensei – devem ter uma explicação. Ou eles, ou minha psicanalista bronzeada pelo sol de Ipanema – a gata formada na PUC que ainda não tive oportunidade de conhecer. Um beijo, linda, um dia perdido dos 70s apareço no seu consultório pra ajustar meus parafusos.
O Rio de Janeiro, segundo o Reinaldão Moraes, é uma paisagem na memória do paulista. Pro Toninho, zelador do meu prédio, não é bem assim. O barraco dele, lá no Morro dos Macacos, fica apenas a 15 minutos do 602, lugar onde repouso o esqueleto e meus dèja-vus.
“O micro-ondas esquentou a noite inteira”, me garantiu.
“O que sobra de um corpo que vai pro micro-ondas?” Fiz essa pergunta pro Toninho, e ele me devolveu isso aqui: “Os outros pedaços vão aparecer, aos poucos. Serviço expresso: vem em carrinho de supermercado, na quentinha. Pelo Sedex, misturado com a farinha que vai fazer a cabeça de muito maluco em Vila Isabel”.
Quer dizer que não teve micro-ondas pra tanto malandro? Aí ele prudentemente mudou de assunto, disse que o tempo ameaçava abrir e me pediu um dinheiro para comprar cigarro.
Se não tivesse caído aquele helicóptero, fico aqui pensando comigo mesmo, nós – que não sabemos da missa um terço – o que mais teríamos a acrescentar, além do nosso cagaço, à barbárie? O quê? Cineminha? Testemunharíamos as rajadas (o som dos morteiros é diferente) e eventualmente levaríamos uma bala perdida nos cornos, como se fôssemos personagens do documentário de um cineasta mauricinho?
O que resta? Deixem-me pensar. Bem, “tuitar” com o Bonner, mandar e-mails indignados pro blogue do Datena? Isso? Ah, meu Deus. Que final de picada. Até o Datena – vejam só – faz sucesso na blogosfera.
Até aonde vão nossas informações? Tim Lopes, que também era Toninho, não voltou pra contar o que não deveria ter visto. E o pior: para que, afinal de contas, servem essas informações? Para quem?
Toninho, o zelador, deixou escapar que, nos morros, corre a mais absoluta normalidade. A imprensa dizia que eram três presuntos, ele me garantiu que eram mais de 30 (número confirmado no decorrer da semana). Enfim, tudo dentro dos conformes. Você pode ser o próximo cadáver assaltado pelo capitão Bizarro!
E a polícia? Ah, polícia não ocupa morro, nem na bala nem na paz. Helicóptero só serve pra tirar onda de efeito especial. Segundo depreendi do sorriso cínico do Toninho, blindagem só serve para proteger político safado, para acalmar as madames da Zona Sul e para distrair os urubus da imprensa. A PM enxuga gelo, e os moradores só se fodem.
O que ocorre é uma relação básica de cliente com fornecedor. Oferta e procura. Capitalismo. A novidade, ou o avanço tecnológico do caos, atende pelo nome de milícia. Pensando bem, não se trata de uma graaande novidade: os milicianos nada mais são do que os atravessadores de sempre. Agem da mesma forma que seus colegas do Ceasa. Nada demais. O que vale é suprir a necessidade dos clientes. Satisfazê-los. Os cadáveres continuam – há 250 anos, desde a revolução industrial – acumulando sob a mesma lógica: a única diferença que existe entre os meninos de Wall Street e a rapaziada do Morro dos Macacos, além de os primeiros serem bem mais truculentos e branquelos, é o endereço. Qual o espanto?
O Estado vai querer acabar com o capitalismo na bala? A história ensina que isso não funciona. De resto, me garantiu Toninho, as cachorras do funk estão na área, a histeria passa, eles mudam de assunto. Da falecida Vila Isabel de Noel Rosa, os urubus e a indignação voltarão a bordejar sobre os laranjais da Cutrale. O MST é a bola da vez. Até o próximo helicóptero cair, merrmão. Tarataratatá. Bum!
Era como se Toninho, o Tarantino dos Macacos, me dissesse: não desligaram o microondas. A morte continua. A Copa do Mundo e as Olimpíadas vêm aí. O Lula sacode a pança e se diverte. O Ruy Castro escreve mais um livro em tecnicolor e câmera lenta, e fatura em cima. A “galera” do tai-chi pode relaxar o esfíncter numa boa: o sol do Arpoador vai prolongar a mesma palhaçada todo final de tarde. Outubro de 2009, Rio de Janeiro – eu amo esta cidade.
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