Estava assobiando Thank You Satan, um blues de Léo Ferré, quando meu amigo Adriano chegou transido, olhos esbugalhados, e disse: “acabou”. Eu já sabia do que se tratava, e retruquei “Piva, né?”. Sim, o Piva. Ele vinha do crematório de Vila Alpina, onde uma semana antes Guzik também havia se transformado em pó.
“Um tempo, não o homem, foi um tempo que acabou”. Nunca vi Adriano daquele jeito, meio que afogado nas palavras que falava: “todas as pessoas que estavam ali – ele me dizia – “foram sugadas, também viraram pó, estavam perdidas”.
Lembrei do meu avô que morreu em 1996 e que, nos últimos anos, havia me convocado para ser uma espécie de secretário e confidente. Antes do seu empacotamento efetivo, o mundo dele também havia se acabado, o velho não se entendia com caixas eletrônicos, passava o dia praguejando o mundo digital e especialmente os controles remotos, mas apesar de tudo adorava viver. Por isso xingava. O mundo que deixou de existir pro velho, de certo modo, era o mesmo lugar que desapareceria pro Adriano depois da morte de Roberto Piva. Isso que é surrealismo.
E não existe nenhuma poesia aí.
A vida atropela. E são poucos os que conseguem atropelar a vida, isto é, que conseguem dar uma resposta tão sacana, estúpida e filhadaputa quanto: à altura. Somos trucidados diuturnamente e nos deixamos levar pelo fluxo. Dóceis. Existimos em função de arriar as calças, pedir perdão e esperar por um final – se possível – bem administrado: dentro das expectativas mais civilizadas, acompanhados do amor e dos óculos escuros das respectivas filhas, cunhadas, amantes e entes queridos. Ah, que tesão que é mulher de luto, de óculos escuros. O gramado do getsêmani, no Morumbi, é lindo às três horas da tarde, sobretudo no outono. A luz que incide nessa época do ano é um espetáculo – com o perdão do trocadilho – sobrenatural. Aquele campo de golfe pra esqueletos se transforma numa passarela. Não, não há coisa mais bonita no mundo do que acompanhar as cadelas enlutadas desfilando seus xales, unhas vermelhas, rabos de cavalo, nucas brancas e óculos escuros.
Senhores dentistas, morram no outono. Ah, morram no outono… e já que não morrerão por um épico, morram pela penugem da nuca de suas viúvas. Mortes prematuras são as melhores. Alguns são eliminados num lapso, numa cagada qualquer, ao atravessar uma rua ou depois de se despedir da filhinha de 7 anos – esses dão sorte e proporcionam belíssimas viúvas.
O ideal mesmo é acidente náutico, playboys prematuros são os melhores defuntos: garantia de viúvas e irmãs cujas penugens escuríssimas dão o ar de suas graças sobre alvas nucas modiglianescas. Essas mulheres não estão acostumadas a usar salto alto. Tesão. Viúvas jovens, namoradinhas – aquelas esportivas que estão ali para acompanhar o cortejo fúnebre e fazer uma média com os ricaços que sobraram. Reparem. Isso que é desfile de moda, a última.
Infelizmente os acidentes náuticos saíram de pauta. Ninguém morre mais em acidente de lancha, nem ricaço de novela das oito. Mas, pensando bem, tirando os ricaços que não morrem em acidentes náuticos, tanto faz a categoria ou a atividade que os defuntos exerciam enquanto ainda permaneciam vivos, sempre de quatro. Essa gente vai pagar IPTU até no inferno. São defuntos vocacionados, fazem planos de saúde e agradecem aos médicos pelo fato de prolongar seus sofrimentos até a última sonda enfiada no intestino grosso. O rumo deles é um cu inexistente.
Ah, morram no outono…
Mas vamos ao que interessa. Se esses íncubos não agradecem aos médicos, agradecem a Deus. Quando – pensem bem… – deviam blasfemar, como fez a vida inteira o mais recente habitante do mundo das cinzas, Roberto Piva. Ao menos – penso – para chegar mais perto de si mesmos ou, na mais modesta das hipóteses, para chegar mais perto de Deus.
Léo Ferré sabia disso, e agradecia a Satã:
Thank You Satan, de Léo Ferré
(Tradução de Paulo de Tharso)
Por essa chama que você acende
No vazio de uma cama pobre ou não
Pelo prazer que ela consome
Em panos de seda ou algodão
Pelas crianças que você cria
Nos dormitórios de querubins
Por suas pétalas esquecidas
Como a rosa da manhã
Thank you Satan
Pelo ladrão que você aquece
Com tua lã macia e berne
Por toda porta descerrada
Dos celeiros dos ricos empanturrados
Pelo condenado que você vela
Na abadia dos ministérios
Pelo rum barato e velho
E pela guimba que você lhe dá
Thank you Satan
Pelas estrelas que você semeia
No remorso de um matador
Pelo coração que bate igual
No peito das putas dos bataclãs
Pelas idéias maquiadas
Na mente de todo cidadão
Pela queda da Bastilha
Que nunca nos dará o pão
Thank you Satan
Pelo padre que se exaspera
Para encontrar o cordeiro de Deus
Pelo sangue vagabundo, elementar
Que ele bebe como Château Margoux
Pelo anarquista a quem você dá
As duas cores de teu país
O vermelho para nascer em Barcelona
E o negro para morrer em Paris
Voltando ao meu amigo Adriano. Ele me fez pensar em algumas coisas: deve ser uma merda, por exemplo, passar a eternidade com sinusite. Pra que consultar um otorrino se não somos eternos? Pra que votar? Pra que pagar impostos se, de uma hora para outra, podemos ter um infarto fulminante? Pra quê?
Penso que algo pior do que exercer nossa precária condição humana é a forma como nos encolhemos diante daquilo que os místicos chamam de imponderável, e eu chamo de sacanagem mesmo. No entanto, existe um antídoto: o amor. Mas só se for amor demais: “quem ama” – como dizia o Herói Devolvido, “não pechincha”.
Um outro amigo meu, Marcos Cesana, também deu uma morridinha – faz um mês. Ele tinha 44 anos, minha idade. AVC.
Que merda, Cesana. Sabe, meu caro, diante dos atropelamentos a que somos submetidos diariamente, diante de nossa pequenez, seria mais do que razoável e natural dizer NÃO, mandar tudo pra putaqueopariu, gritar. Morram, senhores dentistas! Morram no outono!
O idiota aqui bem que tenta, toda semana. Gritar, antes de morrer. Isso mesmo, senhores dentistas, escrevo para ser demitido: sinceramente é minha expectativa toda vez que mando uma crônica para o Congresso em Foco. Ou alguém acha que estou fazendo campanha pra Dilma, pro Serra?
O veneno que compartilho com vocês é o veneno que vai me matar, eu sei disso. E daí? Também é meu café da manhã, esse veneno.
Todavia Sylvio Costa não me demite e ninguém grita mais como um Léo Ferré. Ouve isso Kaká, ouve isso, bispa Sônia:
Thank you Satan
Pela sepultura anônima
Que você deu ao Monsieur Mozart
Sem cruz, sem nada, salvo a piada sem graça
De um cão surgido ao acaso
Pelos poetas que você escorrega
Nos travesseiros dos adolescentes
Quando eles crescem sob a sombra cúmplice
Das flores do mal dos dezessete
Thank you Satan
Pelo pecado que você faz nutrir
Nos seios das mais rígidas virtudes
E pelo tormento que irá surgir
No canto dos leitos onde você não mais está
Pelos imbecis que você ordena padre
No pasto como carneiros
Por teu orgulho de jamais aparecer
Na televisão
Thank you Satan
Por tudo, e mais ainda:
Pela solidão dos reis
E pelo riso na cara das caveiras dos mortos
O jeito de driblar a lei
E que não me ponham o dedo em riste
Pois eu canto por teu bem
Nesse mundo onde as focinheiras
Não são feitas só para os cães
Enfim, era como se meu amigo Adriano me dissesse Thank You Satan quando chegou perplexo do crematório de Vila Alpina. E era como se eu agradecesse a ele e aos céus por ter a oportunidade de responder mentalmente: “Morram, senhores dentistas, morram no outono”.
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