Quentin Deluermoz (in Mikula, vide) observa que o conceito de “terrorismo” virou uma categoria especial, cujos usuários não admitem reflexão nem discussão: alguém qualificado de terrorista é, no pior dos casos, culpável e, no melhor, suspeito. Por esse motivo, falar banalmente de terrorismo pode contribuir para aumentar a confusão e a caçada de bruxas. Inicialmente, então, uma expressão como terrorismo judicial, que atualmente está na moda, poderia ser um abuso de linguagem em alguns casos.
Este exemplo veio à minha mente nestes dias, quando foi difundida a notícia de que um membro do MPF/DF tinha protocolado uma Ação Civil Pública (vide), em cujo inciso IV, (c) pede a nulidade do visto de permanência de Cesare Battisti e sua deportação. Ainda, na seção III, argumenta a legitimidade da ACP, com base na CF, art. 127, que incumbe o MP com a defesa da ordem jurídica.
Cabe, porém, se perguntar: Qual é o intuito desta “destemida” iniciativa?
Supostamente, o MPF quer defender a ordem jurídica, que seria violada pela infração ao inc. IV, art. 5º da lei 6815. Ele impede a concessão de visto a quem tenha sido “condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira”.
Na pág. 10 da ACP, no §3, o autor diz que o ato político do Poder Executivo de não extraditar Battisti não significa que os crimes não sejam passíveis de extradição. Aqui, há um “jogo de palavras”, que, se não fosse proposital, falaria muito mal dos professores de lógica das faculdades de Direito.
É óbvio que a decisão do presidente não modifica o caráter jurídico dos crimes: ser comuns e não políticos, ser dolosos, etc., etc. Mas, a extradição é um ato que, se for autorizado pelo STF (e somente se for autorizado), deixa a decisão ao Poder Executivo. O STF qualifica o crime para decidir se a extradição é ou não aceitável, mas não para ordenar que o réu seja extraditado, muito menos para decidir se ele deve ter ou não visto. Ser passível de extradição não é um atributo jurídico do crime, mas da pessoa. Um crime pode ser culposo ou doloso, pode consistir em homicídio, estupro, latrocínio, magnicídio etc., mas ser ou não extraditável é uma propriedades factual e não jurídica. No Código Penal Brasileiro, usa-se três vezes a palavra “extradição”, mas nunca como atributo de um tipo de crime. Quem é passível de ter seu visto aceito ou rejeitado é o suposto criminoso, mas não o crime em si mesmo. O que seria, por sinal, extraditar um crime?
Battisti não poderia ter recebido visto entre maio de 2007 e dezembro de 2008, nem entre novembro de 2009 e 31 de dezembro de 2010, porque nesses lapsos ele era sim, potencialmente passível de extradição. Mas em julho de 2011 ele já não era extraditável… …salvo que o MP sugira que o ato de Lula foi ilegal. Aqui temos, então, uma pista: um tiro por elevação contra o governo.
Em 8 de junho, Peluso acusou Lula de atuar ilegalmente. Agora, o MP dedica parte da ACP (seção II.3) a elogiar o ministro e a repetir ad nauseam a ladainha das quatro mortes. Também afirma, com ênfase exagerada (p. 13, último §), que seria “descabida” a idéia de extraditar Battisti. Por que tanta insistência em esclarecer algo que ninguém duvida???
Curiosamente, a jogada foi desvendada por um conhecido jurista inimigo de Battisti (vide): Pedido de deportação ou expulsão é puro tapetão. Não cabe extradição por via oblíqua. Este magistrado, embora lamente que Battisti não possa ser devolvido à Itália, reconhece que a deportação seria uma extradição indireta. Ele não disse que seria uma tramoia para devolver o escritor à Itália, mas qualquer pessoa não comprometida percebe isso a uma distância de milhões de anos-luz. Aliás, o MP “recomenda” deportar à França, justamente o país onde sua extradição foi aprovada!
Como a cilada é tão grosseira e o visto não será anulado, qual é a vantagem que o MPF/DF quer tirar? Nos últimos dias, dúzias de brasileiros e estrangeiros mandaram e-mails denunciando isto como “terrorismo jurídico”, e até um jornal italiano me pediu um depoimento. Como já disse, não gosto desse termo, porque nem sempre gerar terror implica, tecnicamente, ser terrorista. Minha dúvida é se o intuito é gerar terror só contra a rede de defesa de Battisti ou também contra o PT e o governo.
Com efeito, o mesmo procurador interveio no caso dos passaportes diplomáticos dos filhos de Lula. (Vide) Não sei se a concessão desses passaportes foi ilegal, mas todos sabem que dar relevância a essa picuinha, que a maioria da população sequer entende, é apenas mais um passo na campanha de provocações. Seria saudável que o governo reaja antes que seja tarde, como aconteceu com Manuel Zelaya. Por sinal, as pessoas mais enfronhadas em assuntos jurídicos, talvez devessem cogitar a possibilidade de mover ação por abuso de poder.
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