“Essa guerra, algum dia há de acabar? Acenei que sim. Mas meu coração se apequenou. Farida queria conhecer mais: saber o motivo da guerra, a razão daquele desfile de infinitos lutos. Lembrei das palavras de Surendra: tinha que haver guerra, tinha que haver morte. E tudo para quê? Para autorizar o roubo. Por que hoje, nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados sempre seriam os outros.”
No trecho acima, retirado do livro “Terra sonâmbula”, do escritor moçambicano Mia Couto, Kindzu e Farida conversavam sobre a guerra civil que tomou conta de Moçambique após sua independência. Ambos se encontravam em um navio encalhado na costa. Os dois chegaram lá fugindo do conflito, que ia esterilizando todos os espaços da vida.
Embora o enredo do livro trabalhe os horrores da guerra, não é isso que interessa Mia Couto. Sua atenção está na incapacidade das pessoas de reagirem à barbárie. Os costumes, as tradições e a história de devoção à terra desaparecem em segundos, a ponto de todos virarem animais no último sonho de Kindzu.
Há um tipo de envenenamento na guerra que se torna mais perigoso do que o próprio conflito. Trata-se da naturalização da violência ou, pior, como retrata o diálogo acima, da sua transformação em forma de vida e de obter prosperidade – para alguns. A guerra, como diz o discurso final do livro, não serve para expulsar as pessoas do país. Mas para expulsar o país – ou qualquer senso de comunidade – de dentro das pessoas.
A principal consequência da violência é o medo do outro. Em longo prazo, esse sentimento impede a vida coletiva, pois a ausência de segurança nas relações sociais tende a isolar os indivíduos, embrutecendo-os. O resultado final, como escreveu o filósofo inglês Thomas Hobbes, é o cenário de guerra total, no qual o “homem se torna o lobo do homem”.
O termo sociológico para esse fenômeno é anomia. Seu significado estrito é “ausência de normas”. Mas ele pode ser usado também para denotar a falta de laços entre os indivíduos. O cidadão deixa de fazer parte de uma comunidade, ele não se vê mais inserido em grupo nenhum e, dessa forma, ignora suas leis,tradições e preceitos básicos de convivência.
Esse sentimento está presente no assassino. Mas também está no funcionário público que desvia o recurso da merenda ou no vizinho que invade a área pública sem qualquer constrangimento. Em todos os casos, são grandes e pequenas violências que se avolumam quando encontram pela frente apatia e indiferença.
Infelizmente, há paralelo entre a terra sonâmbula e desumanizada de Mia Couto e o cotidiano brasileiro. Não apenas pela violência explícita, mas também pelo veneno ministrado que normaliza o medo e retira a comunidade de dentro de nós. Por isso, não é obra do acaso que um dos principais candidatos à presidente tenha como carro-chefe a proposta de armar todo mundo. Ele é produto das suas circunstâncias.
Após o diálogo com o qual este texto foi aberto, Kindzu e Farida se separam. Ela, desiludida, decide ficar no navio encalhado, esperando que alguém a resgate. Ele volta para o continente para se tornar um naparama, um guerreiro mítico capaz de acabar com a guerra. Ao final, ele pouco pôde fazer, a não ser escrever suas aventuras e sonhos em diários, descrevendo uma resistência que era, essencialmente, íntima. Faz sentido. Mia Couto, por meio do personagem Kindzu, decidiu lutar contra o veneno, contra a interiorização da violência. Em meio à loucura, já é muita coisa manter a sanidade e a capacidade de enxergar as coisassem distorções.
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Perfeito. A prisão de Lula amenizará um pouco esse sentimento de injustiça pelas violências do cotidiano, tão bem descrito no texto. Será muito didática a prisão de um ex-presidente, sinalizando que todos estão abaixo da lei. Possivelmente será este o marco inaugural na construção de uma verdadeira república.