Márcia Denser*
Algo que já tive oportunidade de observar por duas vezes em minha vida foi que quando uma crise ou processo histórico, social e político se agudizam na cena brasileira, é o teatro, entre todas as artes, quem toma a dianteira e o pulso da sociedade. Aconteceu nos anos 60 com o teatro político, estendendo-se até os 70, e vem acontecendo desde o final dos 90 até hoje pela efervescência dos grupos teatrais em São Paulo, até porque, segundo bem observou um amigo, o teatro é um fenômeno da polis.
Coincidentemente, o filósofo e crítico Paulo Arantes, que acaba de me enviar um impressionante conjunto de entrevistas dadas este ano, revela1 entre elas sua intensa participação em debates e encontros da classe teatral. Ele observa que, se a fábrica era palco de conflitos em teatros como o Arena, em 60, parece claro que o novo chão da fábrica seja o próprio território conflagrado da cidade, daí a relação orgânica do teatro de grupo com o espaço urbano, vivido agora em regime de urgência.
Para ele, a ficha caiu no final dos anos 90 pelo fato de ter muitos amigos envolvidos com teatro, o que indicou que um fenômeno cultural novo estava em marcha. Ao lado do hip-hop, Arantes ressalta que não é o único a reconhecer no atual renascimento do teatro de grupo, o fato cultural público mais significativo hoje em São Paulo: “Fala-se em mais de 500 coletivos dando combate no front cultural que se abriu com a ofensiva privatizante. Simplesmente está acontecendo como efeito colateral das segregações e hierarquias que o novo estado do mundo vai multiplicando. Uma indústria cara como o cinema não tem esta capilaridade. Por mais motivador que seja um filme da atual retomada, sua projeção não aglutina como a inserção contínua de um grupo teatral numa comunidade. Que não precisa ser necessariamente periférica. Há uma outra margem no centro”.
A Praça Roosevelt, por exemplo, não seria o que é hoje se as suas salas fossem de cinema, sem falar que não corre o risco de ver seus moradores e freqüentadores expulsos, pois a nova classe teatral de que estamos falando é tudo menos uma isca perfumada. Decididamente, o teatro de grupo não é uma "indústria criativa", como é designado, com ironia involuntária, no jargão gerencial dos agentes estatais ou corporativos, o sistema de eventos e equipamentos culturais cujo patrocínio gera uma espécie de renda da imagem, cujo fluxo, por sua vez, obviamente não reverte para os trabalhadores do setor. No dia em que os assalariados e estafados do show business reconhecerem os seus pares na cidade oculta dos grupos, não pouca coisa vai rolar.
E o adjetivo “criativo” naturalmente inverteu o sinal, só que o distinto público, em plena fascinação neoliberalizante, naturalmente não percebe. Arantes relembra que “a vitalidade teatral dos anos 60, à qual a Universidade respondeu à altura, era ascensional. Por paradoxal que possa parecer, a surpreendente vitalidade de agora se deve ao poder de revelação de um desastre nacional, ao qual a universidade nesse meio tempo se ajustou, tornando o pensamento um apêndice dispensável. Numa sociedade nacional do trabalho, como a que ameaçou acontecer no Brasil meio século atrás, a política de classe lastreou um ciclo de instituições aparentadas: a Faculdade de Filosofia e a instituição teatro moderno, se pudermos designar assim a função de atualização cultural necessária do TBC, têm a mesma idade ideológica. Por um momento de real esclarecimento das forças em confronto, gente de teatro, professores e estudantes, partidos operários e ebulição sindical formaram na mesma frente única de ruptura possível. O resto se sabe. Uma ditadura depois, seguida de uma Abertura decepcionante, um encaixe desconcertante entre direita repaginada e esquerda idem, deixaram a pista livre para um novo ethos capitalista reduzir a pó a moldura institucional do período anterior. A Fábrica, fracionada pelas cadeias produtivas globais, saiu de cena, e com ela a consciência de classe de uma multidão de indivíduos entregues ao deus-dará de uma exploração para a qual ainda não se tem nome.”
“A engrenagem infernal dessa ciranda da viração me parece estar na origem de uma resposta coletiva como o teatro de grupo, bem como na raiz do silêncio político da universidade. Pensando na deambulação perene desses novos condenados da terra, também me parece claro que o novo chão de fábrica seja o próprio território conflagrado da cidade, daí a relação orgânica do teatro de grupo com o espaço urbano, vivido agora em regime de urgência. Por isso, uma outra cena de rua é novamente a célula geradora de um leque expressivo das poéticas que animam esse vasto front cultural, que vem a ser o teatro de grupo.
Se fosse possível e desejável resumir numa única fórmula o destino e o caráter do teatro de grupo hoje, diria que é o teatro desse desmanche da sociedade nacional (grifo meu). Ou por outra, mais exatamente, ele é o teatro do desmanche que já ocorreu e está sendo administrado por um outro e inédito pacto de dominação. Numa sociedade que se reproduz segundo a lógica da desintegração, o horizonte de expectativas, que antes empurrava para a frente o tempo social, se sobrepôs hoje ao campo da experiência presente, daí o caráter dramático de uma conjuntura que não passa. Daí também a Vertigem: o grupo teatral que leva esse nome já antecipou a cena com o seu simples enunciado. E por aí vamos, numa sociedade totalmente diferente da anterior. Pouco importa se o Brasil-identidade continua inconfundível, aliás uma marca de sucesso. Uma nação póstuma, como sugere a última montagem da Cia. do Feijão.
Salvo na sua dimensão cronológica trivial, uma sociedade rigorosamente sem futuro, como todas as sociedades securitárias de risco, em que a urgência se tornou a principal unidade política de medida temporal. É só olhar para a conjuntura hiperdramática do aquecimento global, uma conjuntura emergencial de um século! Ou para algumas produções arrasa quarteirão da cinematografia brasileira recente, para perceber com que óbvia intensidade essa entronização estrutural do estado de urgência se converte em espetáculo, no caso, o espetáculo da fratura-social-brasileira-clamando-por-verdade-e-reconciliação, etc. Pois o trabalho artístico do teatro de grupo abre caminho exatamente na contramão desse regime do espetáculo, o qual é antes de tudo um tremendo recurso de poder.
Acho que não depende do teatro, claro, mas é como se parcela significativa do movimento teatral estivesse se preparando para uma virada política. Sabendo ou não, planejando ou não, é como se estivessem numa espécie de antevéspera do que vai acontecer, mesmo com a ducha fria que foi a decepção com o Lula, que já está metabolizada, é página virada. Eu sinto que o movimento teatral é como se fosse uma espécie de arquipélago de pequenos grupos com capacidade de intervenção pública, que esperam um momento para se aglutinar, isto, se aparecer um movimento que tenha envergadura política para propor uma alternativa. O que pode acontecer. Acho até que está no limiar. Muitos ficam furiosos, dizendo ‘queremos fazer teatro, não somos ONG, não queremos fazer trabalho social’. Mas não dá mais para dissociar uma coisa da outra. É assim que funciona. Para chegar ao Capão Redondo, tem que negociar com dez entidades, porque o público está lá. Que não são entidades mafiosas; claro, tem assistencialismo, clientelismo, de tudo quanto é jeito. Mas o teatro de grupo vai encontrar ali um público já organizado. E não dá para passar por cima disso. Não vai fazer teatro para o cara que está no crack, não dá para fazer Orestéia para eles. Teatro de qualidade já estão fazendo mesmo e aí? Para quem? Estão no limiar político, então tem de passar por aí, pelos movimentos sociais. Por isso falei do "protagonismo", as aspas deveriam estar mais visíveis, desse desmanche. É um protagonismo tanto no sentido administrado quanto na possível intervenção política por esse canal – é por onde está indo a sociedade. As empresas e os partidos estão lá gerindo isso. Não dá para entrar com uma cunha lá dentro e encontrar o público lá na frente. E é óbvio que ninguém está fazendo Orestéia de graça, esse teatro precisa encontrar seu público”.
Arantes falou da Praça Roosevelt com seus bares e teatros, Satyros, Parlapatões, etc. Aliás, nossos espaços de resistência – de escritores, atores, dramaturgos, artistas em geral, trabalhadores do show biz em particular e resistentes no íntimo. Mirisola, Bortolotto, Fernandinha D’Umbra, Bactéria. Um corredor a envolver várias gerações literárias e artísticas num mesmo espírito de época – e numa época caracterizada justamente pela “ausência de espírito de época” – finalmente reencontrado.
Para que seja eterno enquanto dure.
1 in O Estado de S. Paulo, 15/7/2007.
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