Renata Camargo
São inegáveis os benefícios que a aprovação do projeto de lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos trará ao país. Um passo atrás, no entanto, o Parlamento brasileiro deu ao retirar da proposta a concessão de incentivos fiscais e econômicos a indústrias e entidades de reciclagem. Essa posição retrógrada foi cartada do governo, que apresentou emenda minando os instrumentos econômicos dessa política.
O texto inicial apresentado criteriosamente pelo grupo de trabalho (GT) na Câmara obrigava a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios a editarem normas para conceder incentivos fiscais, financeiros ou de créditos para indústrias e entidades que realizassem atividades de reutilização, tratamento e reciclagem de resíduos sólidos. Esses incentivos beneficiariam, por exemplo, cooperativas de catadores, servindo de grande estímulo ao setor.
A proposta do GT trazia também a obrigatoriedade do Poder Público instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, às iniciativas de estruturação de sistemas de coleta seletiva, de prevenção e redução da geração de resíduos sólidos, de implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas e associações de catadores e outras ações nesse sentido.
O documento previa ainda a redução, em até 50%, das alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre aquisição ou importação de máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos destinados à reciclagem e ao aproveitamento energético do lixo. Esse percentual não era de 50%, e sim em até essa porcentagem, deixando a critério do executor da política estabelecer até décimos percentuais para incentivar a reciclagem.
Esses instrumentos, no entanto, foram surrupiados pelo governo aos 45 minutos do segundo tempo, senão, na prorrogação do bate-bola de votação do projeto na Câmara. O relator da proposta em plenário, deputado Dr. Nechar (PP-SP), ignorou os indignados apelos do coordenador do GT, Arnaldo Jardim (PPS-SP), e acatou a “sugestão” do colega governista Paulo Teixeira (PT-SP). O resultado foi a retirada de todas as obrigatoriedades de incentivos fiscais, financeiros e de crédito previstas no texto construído em consenso (com aval do governo) no grupo de trabalho.
No lugar de “instituirá”, o governo redigiu que o Poder Público “pode instituir”. No lugar de “cabe editar normas”, o governo bradou um sonoro “poderão instituir normas”. E no lugar do IPI reduzido, o governo não fez muito esforço de redação e suprimiu (retirou) do projeto esse artigo ‘inconveniente’. Para quem bem sabe, um “deve” substituído por um “pode” em um projeto de lei é um risco quase que fatal de cair no “não precisa fazer” ou em um “relaxa, faz se quiser”.
Agora, o projeto está no Senado, mas os senadores não poderão modificar a proposta, se não para suprimir ainda mais as intenções de “pode instituir” incentivos. Esse esvaziamento do capítulo de instrumentos econômicos do projeto da Política Nacional de Resíduos Sólidos revela o baixo nível de maturidade de nossos governantes em relação a um desenvolvimento socioambiental e mostra uma estratégia governista anacrônica. Na visão de setores envolvidos na construção dessa política – especialmente a indústria –, o discurso do governo é, no mínimo, “esquizofrênico”.
Porque, ao mesmo tempo em que a base aliada no Congresso mina os incentivos fiscais e financeiros da política de resíduos, o governo apresenta medida provisória que concede crédito presumido do IPI para empresas que comprarem materiais recicláveis diretamente das cooperativas de catadores (MP 476/09). Essa medida provisória, inclusive, é a mesma que concedeu, entre janeiro e março de 2010, alíquota zero da Confins para a venda de motocicletas 150 cilindradas ou inferior.
Essas posições contraditórias só nos levam a crer que no Brasil ainda não há interesse político em abrir mão da vultosa arrecadação tributária em nome de um progresso socioambiental. Mesmo com todos os benefícios sociais, ambientais e econômicos que a reciclagem de materiais costuma trazer, não há vontade para ousar em uma política tributária menos onerosa para esse setor. E quanto menor essa vontade política, pior para o país.
Segundo a dissertação “A reciclagem de resíduos sólidos e a questão tributária no Distrito Federal”, o Fundo Banco do Brasil investiu, desde 2003 (até abril de 2009, data da publicação do trabalho), mais de R$ 20 milhões em ações de reciclagem em todo o país, para apoiar o segmento das cooperativas de catadores. O investimento real no setor, no entanto, não chegou a R$ 20 mil, por causa da sobrecarga dos impostos incidentes sobre a capacitação de trabalhadores e sobre a melhoria de instalações físicas e aquisição de equipamentos de reciclagem.
Essa perda absurda mostra o quanto o Brasil está atrasado nesse quesito. Reino Unido, Finlândia, Itália e Holanda, por exemplo, eliminaram impostos e tributos sobre reciclagem*. E, como mostra essa dissertação de Nivardo Nepomuceno Sobrinho, a equação para entender a questão é simples: quanto menor a tributação, maior a reciclagem; quanto maior a reciclagem, menor a quantidade de resíduos sólidos; quanto menos resíduos, menor a necessidade de aterros, menor a degradação e maior a qualidade de vida.
A essa equação eu somo uma matemática também fácil de ser entendida: quanto menos aterros e lixões no país, menos tragédias como a ocorrida no Morro do Bumba, em Niterói.
Governo apressa projeto que extingue lixões
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*Fonte: Loughlin e Barlaz (2006) – Policies for strengthening markets for recyclables: a worldwide perspective – artigo publicado por Daniel Loughlin e Morton Barlaz, em Nivardo Nepomuceno Sobrinho – mestre pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB).
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