Salvador Bonomo*
Democracia é processo que se compõe de uma infinita sucessão de atos democráticos. É um caminhar firme, legal, justo e democrático para um futuro promissor. É uma obra inacabável, pois em permanente aperfeiçoamento. É a busca diuturna da mais ampla e justa igualdade: racial, educacional, cultural e econômica. Contrário senso, quando se retroage, não se visa a Democracia, mas, sim, a sua negação: a ditadura.
Nelson Mandela (1918-2013), sul-africano, pacifista, democrata e humanista, logo que libertado da clausura que lhe impuseram por 27 anos, retomou, em 1943, sua luta para, a partir do combate ao apartheid – segregação da maioria negra por uma minoria branca da África do Sul – implantar regime harmonioso, democrático e progressista em benefício de pretos e brancos indistintamente.
Até 1994, a África do Sul foi dirigida apenas por representantes brancos, apesar de minoritários. Nelson Mandela, primeiro presidente negro, elegeu-se em 1994 e governou o seu país por apenas um mandato, que se exauriu em 1999. Não aceitou ser reeleito, o que, também nesse particular, demonstrou seu caráter eminentemente ético, partindo-se do pressuposto de que a alternância no Poder é parte integrante do processo democrático, o que deveria ser atributo de todos os políticos.
Entretanto, durante esse curto período de governo (cinco anos), mudou ele, a conduta e os rumos do seu país, para gáudio temporário do seu povo. Temporário porque, segundo manifestação pública que acabou de ocorrer durante o seu velório, o povo presente, tendo o seu atual presidente, Jacob G. Zuma, como desonesto, vaiou-o longamente.
Em razão da repercussão mundial da eloquente obra democrática, pacífica e, sobretudo, humana, que Madiba (nome tribal de Mandela) realizou na sua terra natal, o mundo inteiro se vê obrigado a curvar-se diante da sua altiva, corajosa, irrepreensível e determinada estatura ética e moral, de que é exemplo a ida, “conjunta e misturada”, da presidente Dilma Rousseff e dos ex-presidentes Sarney, Collor e Fernando Henrique, ao seu concorrido e educativo funeral.
Para homenageá-lo a contento, invocamos, aqui, o sintético, mas objetivo, discurso de outro grande e injustiçado personagem do século passado. Referimo-nos a Bertold Brecht (1898-1956), dramaturgo e poeta alemão, cuja lapidar dicção retrata perfeitamente o Mandela pacífico, democrático, humano, enfim, verdadeiro estadista:
Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis
Eis o que foi Nélson Mandela para a humanidade!
Entretanto, voltando o nosso olhar para o nosso maltratado e sofrido Brasil, apesar de reconhecermos que, nos últimos 20 anos, houve alguns avanços, e de invocarmos, garbosa e frequentemente, o atual texto constitucional, em especial no concernente à igualdade e até mesmo à democracia, lamentamos que a real situação do nosso país se situe muito aquém da situação ideal, almejada, sobretudo, pelas camadas mais carentes da população, pois, entre a forma e o conteúdo, entre a teoria e a prática, divisamos, incontestavelmente, enorme vácuo, imenso vazio, que, há muito, reclama preenchimento!
Parece-nos não pairar qualquer dúvida de que, entre nós, a desigualdade, sinônimo de discriminação, especialmente entre ricos e pobres, e entre pretos e brancos, é, indiscutivelmente, chocando, gritante, agressiva até mesmo para os menos sensíveis aos dramas alheios, porquanto tal exclusão é plenamente visível nos mais diversos setores da Sociedade: no acesso à escola, no acesso a justiça célere, no acesso ao mercado de trabalho, no acesso a igualdade de remuneração, enfim, no acesso às políticas públicas em geral (como saúde, segurança, transporte etc.).
Quanto à taxa de desemprego: em 2012, negros (12,2%) e brancos (10%). O índice maior de emprego dos negros é na construção civil e nos serviços domésticos. Quanto à remuneração: em 2012, a dos pretos era inferior à dos brancos em 36,11%. Definindo a ausência de políticas públicas voltadas para as camadas mais pobres da população (pretos e brancos), que moram (ou vegetam!) nas periferias, já se disse que: “… o Estado só chega pelas mãos da Polícia”.
Relativamente ao nosso sistema carcerário, nada melhor para defini-lo do que a transcrição de trecho de recente entrevista do atual presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, desembargador Pedro Valls Feu Rosa: “Quando passamos por uma prisão brasileira e vemos que lá estão 99,99% de miseráveis, fica claro que há uma cultura de impunidade aqui.”
Sobre violência: em 2010, para cada assassinato de um jovem branco, foram assassinados 2,5 jovens negros. Segundo dados de 2011, o homicídio era a principal causa de mortes violentas dos jovens em geral: 53,4 assassinatos para cada 100 mil jovens. Segundo dados do Mapa da Violência de 2012, havia uma pandemia de mortes de jovens negros. Entre 2002 e 2010, caiu em 33% o número de assassinatos de jovens brancos e cresceu 23,4% o número de assassinatos de jovens negros.
Nesta quadra deste modesto arrazoado, parece-nos oportuno e conveniente, porque pertinente, transcrevermos, aqui, o poema Haiti, da lavra de Caetano Veloso e Gilberto Gil:
Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados,
quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros
quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos
pobres como pretos
Como é que pretos,
pobres e mulatos
E quase brancos
quase pretos
de tão pobres são tratados
Concluindo: pregamos que, em razão das evidentes, graves e amplas injustiças e da vergonhosa e irritante corrupção que se espraia, sobretudo, pelas administrações públicas nos três níveis de governo, urge que surja um Mandela brasileiro capaz de dizer, especialmente aos gestores públicos, uma só palavra: basta!
* Salvador Bonomo é ex-deputado estadual e promotor de Justiça aposentado
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