Marcelo Mirisola*
Não costumo falar da minha vida particular por aqui. Mas o olho gordo me atingiu em cheio na semana que passou (e na outra também). Tive um derrame ocular, e a coisa literalmente embaçou pro meu lado: quase fico cego e, se não fosse o bastante, não consegui me livrar desse trocadilho lamentável. E aí não me restaram muitas opções; ou eu consultava um especialista, ou corria o risco – inclusive – de não mais escrever neste sítio. Não tenho plano de saúde. Como o caixa eletrônico, e a gerente de minha agência me negaram crédito, lá fui eu pedir dinheiro emprestado.
Nesses casos, em primeiro lugar, recorre-se aos amigos. Se os seus amigos não têm as costas quentes, ou se você só se dá com vira-latas endividados e irresponsáveis do seu feitio, bem, aí é hora de procurar alguém da família. Na falta da família e dos amigos, recorra ao banco novamente. Como assim? Assim mesmo, às vezes até no mesmo endereço ou no prédio anexo, porque a financeira do seu próprio banco vai lhe arrumar esse dinheiro amaldiçoado. Basta você subir a escada rolante, ir ao caixa eletrônico e tirar um extrato de sua conta corrente estourada… para comprovar que de fato você é um otário. Crédito rápido, e fácil.
No entanto, esse lugarzinho cor-de-laranja e amoroso que até parece coração de mãe, vai lhe cobrar algo em torno de 50% de juros. Chama-se Taií, a financeira do Itaú.
Vejam o exemplo deste trouxa que vos escreve: peguei R$ 700 para pagar em quatro parcelas de R$ 256,21. Isso quer dizer que, em quatro meses, o que era R$ 700 vai virar R$ 1.024,84.
Nem é preciso dizer que a espera no Hospital da Clínicas é de oito horas, e que de uns tempos para cá o miojo e a salsicha voltaram a ser as principais iguarias do meu cardápio. O preço das consultas: R$ 300, somando oculista e neurologista. Só consegui ir ao primeiro. E foi ele, o japonês oculista, quem me disse: “Procula um neurologista urgente”. Não deu, gastei o dinheiro antes. E agora apertei a tecla Seja o que Deus Quiser. Ou foda-se.
Até aqui, problema meu e do neurologista – que perdeu minha grana pra Marisete. Antes de continuar esta crônica, porém, gostaria de dizer que ninguém tem nada a ver com as minhas escolhas, e as subseqüentes merdas – inclusive os empréstimos – que faço da merda de vida que levo. Não obstante, sinto-me na obrigação de escrever estas embaçadas linhas, para que o leitor reflita um pouco na hora de entrar numa sala Unibanco de Cinema (que deve ter sua financeira que nem parece banco) ou na hora de prestigiar qualquer “evento” que leva o nome de “cultural”. Desconfie quando um banco disser três coisas: 1ª qualidade de vida, 2ª consciência, e 3ª cultura. Tudo mentira, eufemismo. Na verdade, eles querem suas pregas.
Nos últimos tempos, os bancos e suas financeiras resolveram vender o estupro em forma de “ajudazinha” em programas do Faustão e congêneres. Leia-se: populares. Aliás, eu acho que esses Faustões da vida ultrapassaram todos os limites da sacanagem. Quase trinta anos de lavagem intestinal (porque cérebros não existem mais). Não bastassem os “sertanojos” e os exércitos de Ivetes Sangalos enfiados goela abaixo de milhões e milhões de brasileiros, eles ainda reciclam o lixo que fede demais até para a sensibilidade das agências bancárias deles mesmos.
“Vai lá, meu! Dinheiro na hora!” Sei, sei. Eu fui porque as palavras do oculista japonês não saíam da minha cabeça: “Procula um neurologista urgente”. Sinceramente, penso que o Faustão e o Caçulinha deviam, ambos, estar presos e acorrentados em caráter perpétuo e irrevogavelmente incomunicáveis. Esses caras são muito mais nocivos – em termos práticos e morais – do que o Fernandinho Beira-Mar e a quadrilha do Daniel Dantas juntos. Não é exagero dizer que Faustão, Xuxa, Gugu, Galvão Bueno e os genéricos deles, não só educaram toda uma geração de brasileiros endividados, como continuam na ativa, mandando otário para a Taií, para a Fininvest, para os shows da Ivete Sangalo. Também não é preciso dizer que essa geração de endividados procriou e continua procriando como quem paga juros em cima de juros. Suspeito que são esses os pais que jogam os filhos pela janela. Por enquanto são exceções. Mas não são invisíveis: toda semana a Super Nanny está lá para dar um jeito neles. “Quem disse que não dá?” Eu, eu que digo: não dá, desse jeito não, nem fudendo.
Sugiro um boicote
Que se desconsiderem os artistas e escritores que fazem propaganda e/ou trabalham para esses canalhas. Quem sorri para banqueiro não pode fazer “arte”; no máximo, são gerentes, burocratas, executivos disfarçados de escritores, atores, músicos, enfim, prestidigitadores, gado chapa-branca da pior qualidade. Eu desejo do fundo do meu coração um empréstimo da Taií para eles.
E falo isso – claro – em primeiro lugar, pensando no meu bolso. Mas não posso deixar de registrar a fila de pobres coitados que penavam na boca do caixa da maldita Taií. A começar por uma senhora de uns oitenta anos, escorada numa adolescente que devia ser sua neta, e que lhe servia de bengala. A garota reclamava do – ou tentava consertar – o peso da avó sobre os seus belos ombrinhos bronzeados, e era imediatamente assediada por um homem grisalho e ensebado que carregava uma bíblia debaixo do sovaco, atrás dele uma perua muito nervosa e visivelmente constrangida por estar naquele chiqueiro cor-de-laranja. O resto da fila era cinza, penada. Gente que olhava para o chão. E eu lá, encolhido no canto da sala, à espera do atendimento: me imaginava na mesma fila depois de um mês, a pagar minha primeira prestação – talvez cego e usando a mesma cueca virada do lado avesso pela décima quinta vez. Nesse momento, o número da minha senha piscou no placar digital.
Cadastro. Eles pediram o telefone de duas pessoas de minha confiança. Se fosse o caso, ligariam para confirmar que eu era mesmo um idiota que (ainda) prezava da confiança daquelas pessoas e que, além disso, tinha potencial para ser caloteiro também. Não teve jeito, as palavras do oculista japonês não saíam da minha cabeça: “plocular um neurologista urgente”, passei os telefones. A mocinha do cadastro queria saber qual era minha profissão, e renda mensal. Ela adorava os livros da Zibia Gasparetto, e me recomendou o livro Ninguém é de ninguém. Tá certo, pensei: “Principalmente,o dinheiro dos manés. Que é do Setúbal”.
Vergonha e opressão. Nisso, a figura de Waltinho Salles irrompeu nos meus pensamentos. Ué, mas não era pro Setubão aparecer? Mas foi o Waltinho mesmo, o concorrente. Ele estava lá em Cannes, tomando champanhe e discorrendo sobre a juventude de Che Guevara. No meu delírio, o banqueiro lírico havia comido a Fernanda Torres, e esse deslize muito provavelmente deixara a dentuça Daniela Tomas (filha do Ziraldo, aquele da indenização milionária) com ciúmes e puta da vida. Então Daniela – que co-dirige os filmes de Waltinho – virava uma marmota e roia o tapete vermelho de Cannes até chegar no vestido de Fernandinha Torres (que faz propaganda do Santander, tá ligado?). Waltinho Salles dava de ombros, e procurava convencer os jornalistas franceses de sua afinidade com Che Guevara, embora tivesse quase certeza que seu mano, Joãozinho, era mais próximo do guerrilheiro argentino do que ele, e conseqüentemente das classes oprimidas: nas lembranças mais ternas de Waltinho, ele e o irmão passavam as tardes açoitando o lombo de Santiago, o mordomo masoquista.
Não obstante, Waltinho fazia mais o estilo on the road. Os jornalistas franceses quase que foram ao nirvana quando o banqueiro lírico relatou sua primeira experiência na Route 66. Nos idos dos setenta, em crise mística, Waltinho ganhou uma Harley Davidson, que logo batizou de Santiago. À época, devia ter vinte e poucos anos.
Um banqueiro em crise mística, sozinho no deserto do Mojave
Metafísico, né? Pois bem, Waltinho enxergou a si mesmo e ao seu país, ambos projetados no deserto. Aquilo nem parecia banco. Então teve o insight de sua vida. E decidiu que, além de Santiago, faria do mundo sua montaria, digo, projeção. Ora, já que aquilo nem parecia o que de fato era, porque era uma mentira deslavada, então, então papai, ai, papai, é Cinema! Cinema, papai! Quero fazer cinema!
Os jornalistas franceses entraram em uníssono êxtase. O banqueiro lírico ajeitava a franja caída meio que distraidamente sobre os seus olhos, e falava de um Brasil profundo, descoberto um pouco mais adiante, a leste de Oklahoma City na supracitada route sixty six, todavia, no momento em que o banqueiro lírico alcançaria o Arkansas definitivamente transcendental … me solicitaram CPF e RG.
A mocinha do cadastro nem pediu a conta de luz para comprovação de endereço, puxa, pensei: “Como são legais, descolados e modernos”. Enquanto isso, a velhinha da fila tomou cinqüenta reais (que estavam dentro da bíblia) do grisalho ensebado que assediava sua neta. Aqui entre nós, a garota era uma biscate e provocou o tiozinho. Entraram num acordo, eu acho. A perua falida não sabia onde enfiar a tripla papada. O resto da fila cinzenta contrastava com o vergalhão laranja do concorrente do Waltinho, nosso querido e bem dotado Robertinho Taií. Meu cadastro seria submetido a exame. Robertinho Taií, ou Setubão para os íntimos, não me deixaria a ver navios encalhados e líricos. Ele era mais ereção, nascer do sol, cor-de-laranja. Ora, se até aqueles miseráveis da fila haviam conseguido crédito, por que não eu?
E esse “por que não eu?” remeteu aos anos oitenta. A febre e a humilhação me fizeram pensar o seguinte: “Cazzo, esses banqueiros sempre comeram todo mundo. Será que Robertinho Setúbal envolveu-se com Paulinha Toller nos oitenta? Por que não eu, por que não eu?”.
Plausível. Um cara que diz pra você (sem que lhe dê a chance de esboçar qualquer tipo de reação) que daqui pra frente em vez de lhe enfiar uma piroca de 12 cm, digo 12%, vai lhe enfiar uma manguaça de 50 cm, digo 50% na sua bunda, bem, um cara desses é – no mínimo – convincente. Suponho que tenha comido sim, deve ter comido a Paulinha Toller e os abóboras selvagens que a acompanhavam nos oitenta, porque eu é que não comi. Em se tratando de banqueiros, é tudo uma questão de Opportunity e estilo. Os caras vão enrabá-lo de qualquer jeito, uns são líricos e nem parecem banco, e os outros são mais objetivos, completos e investem na ruína dos cofres públicos e na conservação do planeta.
O que conta, segundo Fernandinha Torres, é “o valor das idéias”. Aqui, faço uma pequena correção. Não são “idéias”, Fernandinha. Esses caras são obcecados, na verdade a “idéia” deles é uma só, fixa; qual seja, comer nossa bunda.
Da minha parte, não comi Paulinha Toller nem nos oitenta, e muito menos quando a mocinha do cadastro me deu os “parabéns” em virtude da aprovação do meu crédito. Eu havia passado no teste de otário.
Parabéns? Só nesse momento fiquei sabendo que engoliria um Setubão de 50 cm , digo, 50 % no “forévis”, como diria o sábio Mussum. Não reagi. Era pegar ou largar, bastaria liberar uma senha que o dinheiro estaria à minha disposição. Saquei os R$ 700. Em seguida, descobri que o generoso Setubão havia me emprestado R$ 1,4 mil – dinheiro que eu não havia pedido. Aí eu disse: “Não quero”. A mocinha do cadastro respondeu: “Tarde demais, está no sistema”.
Nem sabia o que falar/fazer, acho que passei mal. O Setubão me atingira desde a sola dos pés até o couro cabeludo. O corpo todo (o corpo tomado, digo) tremia de pânico e terror, e ao mesmo tempo era trespassado por uma corrente elétrica cor-de-laranja, cabeçuda. A partir da nuca o formigamento aumentou de temperatura até sacudir minhas orelhas. Tive a nítida sensação de ser engolfado, sub-repticiamente, na base do inopino – e, claro, por trás. Aos poucos, meu campo de visão fora tomado por bolhas pretas, perdi a sensação de tempo, lugar e espaço. Nesse lapso, não sei dizer se foram dias, anos, ou 50 por cento de juros em 4 meses, vaguei pelo limbo dos devedores irremediáveis. A risada de Caçulinha ecoava naquele pântano. Nisso, algum’alma irrompeu do vale dos arrombados (vale dizer, estava no caixa ao lado), e veio ao meu socorro. Ainda meio grogue, lembro-me de ter ouvido essas palavras: “Você nunca foi arrombado? No começo parece estranho, mas depois você se acostuma”.
Fazer o quê? Depois de o Setubão rasgar o seu reto e perfurar seu intestino, o negócio é ir ao médico e costurar as pregas, gastar todo o dinheiro emprestado e, em seguida, voltar à financeira e pegar outro empréstimo para poder pagar as prestações da funerária e a entrada do cineminha que nem parece banco, porque banco não é, o nome disso é tortura com requintes de crueldade, sadismo, empalamento. Podia até ser um filme brasileiro.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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