Márcia Denser*
Gilberto Maringoni da Carta Maior nos chama atenção para o fato de que, após doze eleições na América Latina, boa parte da população do continente repele o neoliberalismo nas urnas. Bolívia e Venezuela conduziram líderes de esquerda ao governo. Argentina, Brasil, Uruguai, Nicarágua e Chile têm presidentes de centro-esquerda. O Peru e o Haiti podem engrossar este segundo bloco, que acaba de ganhar a adesão do Equador. Um terceiro time enfeixa o espectro do centro-direita à direita, com Costa Rica, Colômbia, México e Honduras. O certo é que a integração continental depende fundamentalmente de três atores: Venezuela, Argentina e Brasil. Ainda segundo Maringoni, apesar da polarização e dos enfrentamentos pontuais, nenhum dos países, nestes oito anos, logrou construir um projeto concreto questionando os parâmetros mercadistas.
Porque este problema não é só desses países e seus líderes, mas da esquerda mundial nas condições políticas reais. A questão está em não se ter conseguido ainda extrair uma teoria desses fenômenos novos, após a quebra do socialismo real no início dos anos 1990.
Mas saídas à esquerda já estão sendo formuladas e discutidas em toda parte, a exemplo do Seminário Internacional de Capitalismo Cognitivo, Comunicação, Linguagem e Trabalho que aconteceu este mês no Rio de Janeiro, reunindo pensadores brasileiros e europeus que pesquisam os desdobramentos do capitalismo contemporâneo, entre eles Maurizio Lazzarato, da Universidade de Paris I, que também lança o livro As revoluções do capitalismo (Record/Civilização Brasileira), abrindo a coleção A política no império.
O filósofo italiano propõe o desafio de se pensar uma política da multiplicidade para as lutas do século XXI, que começaram com o ciclo de Seattle, continuaram nos Fóruns Sociais e mobilizaram multidões globais contra a Guerra do Iraque, um segundo Vietnam em mega escala. Lazzarato desenvolveu com Antonio Negri teorizações sobre trabalho imaterial e pós-fordismo, tomando como paradigma a empresa, não mais a fábrica como Marx.
A empresa que se diferencia fundamentalmente da fábrica, pois não produz uma mercadoria, mas um mundo. Ou seja, é a mercadoria + seu conceito, o que implica, por parte do consumidor, na aquisição de todo um “modo de vida” representado pelo marketing, design e publicidade. Hoje, antes de fabricar o objeto é preciso construir o desejo e a crença. Assim, o capitalismo tardio não é mais apreendido como modo de produção, mas como produção de mundos, e consiste precisamente em negar ao ser humano a criação aberta de outros mundos possíveis – outras ideologias, outras saídas, outros modos de vida – restringindo-o à possibilidade de um único mundo sem alternativas.
A “guerra econômica” surge como “guerra estética” que, por meio das “máquinas de expressão” (os seriados americanos de televisão, talk shows, os filmes de Hollywood), se levanta como uma sólida barreira contra nossa capacidade de criar mundos possíveis no plural, enfim, contra nossa imaginação sem fronteiras.
Eis o que achei interessante entre as formulações deste filósofo, porque cruzando esta idéia com o texto de outros críticos norte-americanos , estes também constatam que desde 1985 há a tendência à destruição potencial da cultura local ou nacional como um todo no segundo e terceiro mundos.
Deve ficar claro que o triunfo do cinema hollywoodiano não é apenas um triunfo econômico, mas também um triunfo formal e político. Trata-se da morte relativa do moderno, e também duma morte do político e uma alegoria do fim da possibilidade de se imaginar alternativas sociais radicalmente diferentes da ordem vigente (o grifo é nosso). Isso porque o cinema dos anos 60 e 70 ainda confirmava a existência dessa possibilidade ao atestar que a descoberta ou invenção de uma nova forma era equivalente à descoberta ou invenção de relações sociais e de formas de viver no mundo radicalmente novas.
E são essas possibilidades – cinematográficas, formais, políticas e sociais – que desapareceram na medida em que consolidou uma hegemonia mais definitiva dos Estados Unidos.
Se ainda não se pode apontar saídas, pelo menos iluminamos o caminho.
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