Osiris Lopes Filho*
O governo Lula escolheu o processo de produção e divulgação do seu pacote de reforma tributária: gotejamento. Diante da expectativa e da necessidade de modificar um conjunto anárquico de tributos, caracterizado pela irracionalidade, complexidade e injustiça, as informações a respeito vão pingando gota a gota, parciais, sem sentido de globalidade, incompletas.
Pode-se imaginar o cenário: os técnicos encarregados dessa matéria a misturar os ingredientes nos cadinhos. No desenvolvimento da produção, preparam uma amostra do que já fizeram, põem-na num conta-gotas, e o ministro de plantão vai despejando o conteúdo das medidas, para o público interessado, empresas e povo, que vão tomando conhecimento.
Algumas já velhas, embora com rótulo moderno, como o Imposto Sobre Valor Agregado, designação que encanta os noviços do laboratório tributário. Panacéia bolada para engambelar os incautos e empresários afoitos, produto de aficcionado ao que vem do estrangeiro, assimilado sem crítica, como quem compra pacotes em supermercados.
No Brasil, em 1958, no então imposto sobre consumo, introduziu-se de forma parcial a não-cumulatividade, da qual o valor agregado é uma espécie.
A mudança do nosso parque produtivo, promovida pelas montadoras, de veículos, geladeira e motores apenava o produtor com o sistema de apuração do imposto, em que na nova fase, o imposto da etapa anterior estava contido na sua base de cálculo. A vantagem da tributação não-cumulativa é a de neutralizar a pluralidade de etapas do processo produtivo e evitar a chamada verticalização da produção em único estabelecimento, para eliminar oportunidades de incidência do imposto.
Na emenda constitucional nº 18 à Constituição de 1946, os dois principais impostos incidentes sobre vendas, o IPI e o então ICM, foram submetidos à não-cumulatividade, em que não há aumento da carga tributária derivado da pluralidade de etapas de produção.
Foi um brasileiro, perseguido pela ditadura militar, Gerson Augusto da Silva, quem, por meio da Oficina de Finanças Públicas da Organização dos Estados Americanos, que dirigia, disseminou o Imposto de Valor Agregado pelos países da América Latina, a partir da experiência da reforma tributária realizada no nosso sistema tributário na década de 60, em que seu papel foi relevante.
Reforma tributária realística, alterando detalhes, que, no seu somatório, implicou grandes mudanças. Reforma feita, essencialmente, na legislação que disciplina os tributos, baseada em princípios e diretrizes orientadoras e em estudo da realidade, com os dados econômicos e simulações de tentativas e resultados.
Faço uma pausa e continuo a examinar o processo de reforma tributária utilizado pelo governo Lula. O gotejamento adotado não é proporcionado pelo manejo do conta-gotas. O ambiente de sua criação é o da caverna. Retifico, das grutas. Vem do alto e se materializa gota a gota, em estalactites, formações pendentes do teto, resultantes da lenta cumulação de gotas contendo sedimentos e estalagmites, formações que se materializam no solo, também pelo gotejamento oriundo do teto da gruta.
Em respeito à preservação das grutas, estabelecida pelo órgão de controle do meio ambiente, está interditada a utilização de luz elétrica no seu interior, que, pelo calor que provoca, danifica as formações internas, em processo de desenvolvimento. Parece-me que para facilitar os trabalhos nessa ambiência, estão colocando lá mão-de-obra técnica, cega, que transita com maior desenvoltura na escuridão. Aí, ocorre um outro detalhe operacional: por vezes pessoas, ditas iluminadas, por ato governamental, ministros, ali adentram e tropeçam desengonçados nas estalagmites ou batem com a cabeça nas estalactites, ou mesmo uns nas cabeças dos outros, como já registrou um presidente da Câmara dos Deputados.
Como a fonte desse gotejamento é o teto da gruta, e tudo vem do alto, prestigia-se a estalactite. Vale dizer, a Constituição. Essa, ao que parece pelas gotas divulgadas, é que sedimentará a formação inicial do sistema. O caminho da reforma será longo, até chegar à lei do tributo, e mais alongado ainda até ser entendido pelo contribuinte, que é quem, no nosso sistema tributário, faz tudo. Pratica o fato econômico, declara-o e paga o tributo devido. Apenas no IPTU e no IPVA o Fisco informa o valor do tributo.
Nesse habitat cavernoso, imune ao calor, principalmente ao provocado pelos debates e sem a luz solar, a proposta de reforma será fria, aquém das expectativas e necessidades.
*Osiris de Azevedo Lopes Filho, advogado e professor de Direito na Universidade de Brasília (UnB), foi secretário da Receita Federal.
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