Neste mês de fevereiro faz 15 anos desde a morte de Caio Fernando Abreu, em fevereiro de 1996, de Aids. E assim como Truman Capote, cuja biografia escrita por Gerald Clark foi ao meu encontro no silêncio duma biblioteca pública precisamente no dia e mês de sua morte ocorrida em agosto de 1984, as Cartas de Caio F., obra organizada por Ítalo Moriconi (Rio, Aeroplano, 2002) também me reencontraram como primeiro e único livro que desencaixotei – porque mudei de casa em meados de janeiro – ambos a reivindicar sua lembrança, lutando contra a desmemória do tempo presente.
Falando em mudança, a questão do nomadismo e da geografia em Caio F. é uma constante.
Percorrendo as Cartas, nota-se que ele se muda de forma incessante: de Porto Alegre para o Rio, retorno à Porto Alegre, daí o ano passado na Europa, no desbunde lisérgico-juvenil dos anos 70, pulando por vários lugares, Estocolmo, Amsterdã, Paris, Londres, retorno a POA, então nova mudança para o Rio, onde não fica muito tempo, porque retorna novamente a Sampa, etc.
O sociólogo Sérgio Miceli acertou na mosca quando considerou o nomadismo tanto horizontal, no espaço geográfico, quanto vertical, na escala social como um dos aspectos mais marcantes dos escritores brasileiros, e a coisa vêm de longe.
Se eu dissesse que a multiplicidade de experiências propiciada pelas várias mudanças ativam a criatividade iria soar horrivelmente acadêmico, portanto não digo ou digo me gozando de saída porque não sei se é bem assim. Em Caio F. existe a perseguição duma espécie de Passárgada ou Shangri-lá ou paraíso-em-suspenso, que poderia ocorrer sempre no próximo e em outro lugar, jamais no presente, seja onde for que ele estivesse.
Objetivamente, para Caio F este Outro Lugar se chamava Passo de Guanxuma, cidade fictícia sobre a qual ele vivia planejando escrever um romance. E não teve tempo de fazê-lo. Segundo Moriconi, o Passo era uma projeção imaginária da sua Santiago do Boqueirão natal e é referida no romance Limite Branco, no conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga. Na coletânea Ovelhas Negras, Caio incluiu um esboço do que seria o primeiro capítulo do romance sobre este paradise lost, out and nowhere, existente não no aqui e agora, mas fora e em nenhum lugar.
No entanto, a releitura das Cartas sempre me entristece, porque a morte prematura de Caio F. aos 47 anos me mostra quão longe pode ir o auto-engano. E não me perguntem por que, não quero nem vou explicar, porque eu mesma, com mais de cinquenta, acabo de sair de um outro que me custou quatro anos e recursos impossíveis de serem repostos como se eu tivesse todo o tempo do mundo, quando é tempo que agora já não tenho.
Um rápido flash da geografia em Caio F: Aqui tá esquisito. Na verdade, não gosto do Rio. Este canto (o hotel em Santa Teresa onde morou em 83) é bom: pela janela vejo uma mangueira enorme, samambaias (…). Mas a cidade (o Rio), ah a cidade, que miséria. Um favelão. Detestei São Paulo também nos dias que passei aí. Achei pobre e barulhenta, um trânsito infernal. (…) Quando vou à cidade, volto irritado. Silêncio, ando obcecado por silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o ruído do vento. E o bater do coração. E se possível isso que chamamos Deus, existindo devagarinho em cada coisa. (Cartas, pg.66).
Então é isso: toda essa ciganagem, toda essa vertiginosa engrenagem, todo este furor sem rumo nem horizontes, constituem uma espécie de síntese da vida de Caio F. Quanto à sua obra, esta não morre: já ficou para a posteridade.
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