Assim que foi aprovada a Lei 12.528/11 e principalmente após a instalação da Comissão Nacional da Verdade, alguns começaram a opinar que, em relação às lutas durante a ditadura militar brasileira, os dois lados devem ser ouvidos. Ora, que dois lados? Não há dois lados. Há um só lado, o do cidadão e da cidadã perseguidos e oprimidos pelo Estado. Estes são os que têm que ter voz.
A Comissão da Verdade é um mecanismo para apurar abusos e violações dos direitos humanos, e seu funcionamento deve priorizar “escutar as vítimas de arbitrariedades cometidas” e, ao mesmo tempo, conhecer os “abusos havidos, através da versão dos perpetradores dessas violências ou da revelação de arquivos ainda desconhecidos”, como diz a cartilha“A Comissão da Verdade no Brasil”,preparada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política – São Paulo.
Esta mesma cartilha define o objetivo principal e os objetivos adicionais da Comissão da Verdade. Os principais são: “Descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do passado, dando voz às vítimas”. E os adicionais: “Combater a impunidade, restaurar a dignidade e facilitar o direito das vítimas à verdade”.
Salientam os autores da cartilha que “mediante os testemunhos na Comissão da Verdade, a dignidade das pessoas é restabelecida e sua história passa a ser parte do conhecimento e reconhecimento geral sobre o período” ditatorial. A Comissão da Verdade tem também o papel de “acentuar a responsabilidade do Estado e recomendar reformas do aparato institucional” e “contribuir para a justiça e a reparação”.
Embora seja um dos objetivos da Comissão da Verdade “reduzir conflitos e promover a reconciliação e a paz”, sabe-se que isso só será possível “com a Justiça e com o reconhecimento oficial das responsabilidades de indivíduos que, a mando do Estado, violaram os direitos mais elementares, prendendo arbitrariamente, torturando e assassinando opositores do regime, muitos deles até hoje desaparecidos”.
Em seu texto, “Folha parece ter entrado mesmo na batalha dos ‘dois lados”, Marcio Sotelo Felippe, no Viomundo, afirma que o “paradigma Auschwitz – como categoria, como conceito – reproduziu-se aqui, na ditadura militar fascista: um Estado, com o seu formidável potencial ofensivo, elege como diretriz aniquilar ou impor grave sofrimento a um grupo ou coletividade”. Enquanto isso, o outro grupo, a esquerda, os que faziam a resistência à ditadura, o faziam como “direito de resistência – categoria jurídica e ética em que se enquadra a luta armada contra a ditadura” e não podem de modo algum ser comparados aqueles que perpetuaram “os crimes contra a Humanidade praticados pela ditadura. Não são os mesmos os conceitos teóricos, jurídicos e morais”.
E, no caso da resistência, não precisamos de uma Comissão da Verdade. Os responsáveis foram presos, torturados, julgados por tribunais de exceção e cumpriram pena. Alguns foram expulsos do país, outros exilados. Centenas foram assassinados, ou seja, condenados à morte. Ainda precisam, mais uma vez, ser perseguidos para que se possa alcançar seus algozes torturadores, que estão de pijama usufruindo de polpudas aposentadorias?
Espero que a Comissão da Verdade consiga avançar para além do que já foi produzido pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia.
Espero também que possa esclarecer as gravíssimas violações de direitos humanos que se abateram sobre lideranças camponesas, trabalhadores rurais e populações indígenas que sofreram deslocamentos forçados, quando não foram pura e simplesmente massacradas. Exemplo emblemático é da etnia Waimiri Atroari, dizimada por se opor à construção da rodovia Transamazônica, em plena ditadura militar.
Espero que o resultado a ser produzido pela Comissão nos próximos dois anos possa contribuir para a construção de uma cultura de paz, de repúdio à violência e à tortura ainda vigentes em muitas delegacias policiais.
Que também não se esqueça do envolvimento de alguns setores empresariais no financiamento do aparato repressivo.
A Comissão da Verdade é para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
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