Confira os principais argumentos contra a venda da Companhia Vale do Rio Doce, nos quais a desembargadora federal Selene Maria de Almeida se baseou para redigir o voto acolhido pelos colegas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Com a decisão, retomou-se o andamento de 69 ações populares que pedem a nulidade da privatização da Vale e sua exclusão do Programa Nacional de Desestatização.
1) O “sumiço” de 9,688 bilhões de toneladas em reservas de minério de ferro
Conforme relatório técnico da Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), em maio de 1995, a Vale informou à Securities and Exchange Commission – SEC, órgão responsável pela fiscalização do mercado de ações norte-americano – que suas reservas de minério de ferro nas minas do Sistema Sul, todas localizadas em Minas Gerais, totalizavam 7,918 bilhões de toneladas.
No edital de venda da empresa (item 6.5.1), o Sistema Sul aparece com apenas 1,4 bilhão de toneladas, ou seja, 6,518 bilhões de toneladas a menos.
A Vale informou à SEC que as reservas minerais do complexo de Carajás, situado no Pará, eram de 4,970 bilhões de toneladas. No edital, as reservas de Carajás foram estimadas em 1,8 bilhão de toneladas – 3,170 bilhões de toneladas a menos.
Quantificar o valor financeiro das reservas subavaliadas é tarefa bastante complicada. Tudo depende, afinal, da situação em que elas se encontravam à época da privatização. Os preços médios praticados no mercado eram de US$ 14 a tonelada (hoje, ficam entre US$ 22 e US$ 23) para o minério in natura. Mas tais valores certamente não poderiam ser o parâmetro para nenhum cálculo, já que incorporam o custo total de produção da tonelada, incluindo gastos administrativos, tributos e o transporte até o local da entrega do minério exportado.
Assim, ficariam duas referências: o valor do minério de ferro dentro da mina, estimado pela Coppe em dez centavos de dólar por tonelada, e o seu preço “na boca da mina”, isto é, já extraído. Nesse caso, o valor à época da privatização, de acordo com a Coppe, corresponderia a US$ 8 a tonelada.
Portanto, as reservas excluídas da avaliação representariam, em termos financeiros, entre R$ 1,094 bilhão e R$ 87,579 bilhões.
2) Critério de avaliação subestimou valor financeiro das reservas
Além da subavaliação física das reservas de minério, a Mineral Resources Development Inc. (MRDI) – subcontratada do consórcio liderado pela Merril Lynch e Bradesco S/A para avaliar o patrimônio da Vale – ignorou todas as reservas cujo produto já estivesse na boca da mina, concluiu a Coppe.
Desse modo, mesmo as reservas indicadas na avaliação teriam sido financeiramente subavaliadas, já que seu valor foi calculado como se todo o produto estivesse in situ, ou seja, dentro da mina. Como não se determinou o montante das reservas “na boca da mina”, faltam elementos para mostrar o impacto financeiro da subavaliação.
3) Subavaliação das reservas de manganês
A Vale informou ainda à SEC, em maio de 1995, que suas reservas lavráveis, provadas e prováveis, de manganês eram de 65 milhões de toneladas.
Em 28 de junho de 1996, depois de iniciado o processo de privatização, a MRDI avaliou as mesmas reservas em 26 milhões de toneladas. São 31 milhões de toneladas a menos.
Somente em duas reservas de manganês, Mina Azul e Urucum, a Coppe constatou uma diferença de 9 milhões de toneladas a menos.
Assim como ocorreu com as reservas de minério de ferro, a MRDI avaliou as reservas de manganês como se todo o produto estivesse in situ, ou seja, dentro da mina. O minério situado dentro da mina era cotado, em média, a US$ 0,5/tonelada, enquanto a cotação do minério mine gate (na boca da mina) subia para US$ 20/tonelada.
4) Subavaliação das reservas de ouro: diferença de pelo menos R$ 406,4 milhões
Segundo a Vale informou à SEC, em maio de 1995, suas reservas de ouro somavam 113,2 toneladas. Mas o edital de venda da empresa (item 6.5.3) indicou reservas de 106,4 toneladas. Uma diferença de 6,8 toneladas de ouro a menos.
Todas as reservas de ouro foram avaliadas como se o produto estivesse todo dentro da mina. Os técnicos da Coppe confrontaram os números obtidos na avaliação oficial e calcularam possíveis prejuízos com as reservas de ouro. A conclusão é que eles totalizaram, a preços da época, pelo menos R$ 406,4 milhões.
5) Subavaliação das reservas de bauxita
O relatório da Coppe, ao analisar as reservas de bauxita da mina de Trombetas (PA), aponta uma subavaliação de 192 milhões de toneladas. Tomando por base o valor unitário in situ de US$ 0,25/t, chega-se a um prejuízo estimado de US$ 48 milhões, ou R$ 54,24 milhões à época da privatização.
Atualmente, estima-se que a Vale detenha 11% das reservas mundiais de bauxita. No ano passado, a empresa investiu US$ 1,2 bilhão nas atividades de alumínio e bauxita, que já são sua segunda maior fonte de receita.
6) Minerais que não foram avaliados
As reservas minerais de titânio, nióbio, calcário, dolomito, fosfato, estanho/cassiterita, granito, zinco e grafita não foram avaliadas pela MRDI e, por isso, não entraram no edital como parte do patrimônio da Vale.
No entanto, conforme documento enviado em abril de 1997 pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, a CVRD detinha reservas provadas e prováveis de titânio de 92,5 milhões de toneladas.
O mesmo ofício do DNPM aponta reservas de nióbio de 69,1 milhões de toneladas.
O Brasil detém mais de 62% das reservas mundiais de titânio, e 79% dessas reservas pertencem à Vale. O titânio é um mineral estratégico para as indústrias químicas, nucleares, naval, aeroespaciais e outras.
Quanto ao nióbio, o Brasil possui 88% das reservas mundiais do minério, que é utilizado para a fabricação de aços de alta resistência, como os usados em naves espaciais. Os reatores nucleares também dependem do nióbio para fusão em altas temperaturas.
7) Subavaliação do setor de florestas, celuloses e papel
Em março de 1997, na época da avaliação, estimava-se que a Vale dispunha de 5.800 km2 de florestas replantadas. Nessa área, equivalente à da cidade de Brasília, extraía-se matéria-prima para a produção de 400 mil toneladas por ano de celulose.
O relatório da Coppe mostra que houve discrepância na avaliação das atividades da Vale nessa área, na qual a empresa atuava por meio da Bahia Sul Celulose S/A. Foram feitas duas avaliações, absolutamente divergentes (R$ 262 milhões e R$ 207 milhões), prevalecendo a mais baixa. Uma diferença de R$ 55 milhões. Para o Ministério Público Federal, deveria ter sido feita uma terceira avaliação da Bahia Sul.
8) Valor zero dos direitos de lavra
Antes da privatização, a Vale recebeu concessões, por tempo indeterminado, para realizar pesquisas de lavra em cerca de 23 milhões de hectares do território brasileiro, área equivalente aos estados de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte juntos. Essas concessões de lavra passaram à propriedade da Vale privatizada com “valor zero” – sem avaliação, na qualidade de meras “expectativas de direitos”.
Os engenheiros da Coppe estimam que 104 jazidas minerais ficaram de fora da avaliação do patrimônio da Vale, o que reduziu o valor contabilizado das reservas da empresa em mais US$ 114,5 milhões (R$ 129,38 milhões, pela cotação da época).
Em 31 de março de 1997, pouco mais de um mês antes do leilão de privatização, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e a Vale firmaram um contrato de risco para estabelecer uma cota de participação do banco nos eventuais lucros da Vale com as novas jazidas, ainda não exploradas comercialmente.
Ficou definido que cada parte investiria US$ 110 milhões, para custear as pesquisas de lavra, acertando-se que os lucros seriam divididos igualmente entre o banco e a CVRD. A respeito desse contrato, a assessoria de imprensa do BNDES informou que ele ainda está em vigência e que a União, representada pelo banco, detém 50% de lucro sobre as novas jazidas que a Vale descobrir e vier a explorar.
9) Transferência ilegal dos minerais nucleares
Segundo informações da própria Vale do Rio Doce, constantes de um documento da Comissão Nacional de Energia Nuclear de março de 1997 e do relatório da Coppe, confirmou-se a presença de urânio – mineral nuclear de uso estratégico – nas áreas denominadas Corpo Alemão e Corpo Salobo 3 Alpha (na área da Salobo Metais, subsidiária da Vale em funcionamento no Para).
Também verificou-se a ocorrência em Corpo Salobo 3 Alpha de tório, outro mineral radioativo. Na época, estimava-se que a Vale detinha 1,8 milhões de toneladas de urânio
Ocorre que de acordo com o artigo 21 da Constituição Federal, a exploração de minerais nucleares é monopólio da União Federal, incluindo direitos sobre pesquisa, lavra, enriquecimento e reprocessamento, industrialização e comércio desses minerais. Reforçando a exclusividade, a Emenda Constitucional 9/95 acrescentou que a pesquisa desses minerais não pode ser objeto de transferência por meio de contrato a empresas privadas.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), toda iniciativa de atividade nuclear está sob controle do Congresso Nacional, nos termos do artigo 49 da Constituição. Mas, com a privatização, a Vale levou consigo os trabalhos de pesquisa de minerais radioativos em seus campos de prospecção.
10) A ligação entre a Merril Lynch e a Anglo American
Ao longo dos trabalhos de avaliação do patrimônio da Vale, veio à tona a informação de que a empresa Merril Lynch, líder do consórcio contratado para realizar o serviço, adquirira, em 1995, a empresa Smith New Court, controladora de outra corretora, a Smith Borkum Hare (SBH). O problema é que a SBH atuava como corretora da Anglo American, concorrente internacional da Vale e potencial compradora da empresa.
A Anglo American participou do leilão de privatização, consorciada com o grupo Votorantim. Na visão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, os vínculos entre a Merril Lynch e a Anglo American comprometeram a imparcialidade do leilão.
Na época, a relação especial entre as empresas foi denunciada pela Comissão Externa da Câmara dos Deputados, mas o BNDES amenizou o fato, argumentando que a ligação entre a SBH e a Anglo American era “puramente administrativa”.
O ex-deputado federal e advogado Marcello Cerqueira, membro das reuniões técnicas do grupo de trabalho da Comissão Externa da Câmara, chegou a receber pelo correio a cópia de um fax emitido em 13 de março de 1997, por um executivo da Merril Lynch no Brasil e endereçado ao vice-presidente do BNDES, dizendo estar enviando o material preparado “pelo nosso pessoal em Nova York” para uso pessoal dele. Em anexo, estava um texto escrito em inglês com tópicos que orientavam a resposta que viria a ser dada pelo presidente do BNDES em entrevista coletiva no dia seguinte, 14 de março. Esse documento foi usado em notificação judicial ao BNDES, que se explicou respondendo que se tratava de rotina do banco.
Sobre o fato, no acórdão do TRF, a juíza Selene assinala: “Essa circunstância específica objetivamente exige, até prova em contrário, que se analise com prudência a avaliação procedida pela Merril Lynch”.
11) Não avaliação da propriedade do Complexo de Carajás
Em 1986, por meio da resolução 331/86, o Senado autorizou a União a ceder, gratuitamente, à Companhia Vale do Rio Doce, o direito de uso sobre o imóvel de sua propriedade. No entanto, a cessão só foi efetivada mais de dez anos depois, com a edição de um decreto no dia 6 de março de 1997, depois de terminada a avaliação do patrimônio da Vale.
Dessa forma, a propriedade de 4.119,48 km2 – equivalente a três vezes o tamanho da cidade de São Paulo – ficou de fora do edital de venda da empresa e, portanto, não entrou na avaliação do patrimônio.
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