Renaro Cardozo
A divulgação do relatório preliminar da CPI dos Sanguessugas deixa claro que uma importante e exaustiva tarefa ficou para ser executada em outro momento e em outra instância: a investigação das centenas de prefeituras envolvidas no esquema ilegal de compra de ambulâncias e equipamentos médicos.
Documentação obtida pelo Congresso em Foco mostra um caso que, além de não ter sido objeto de investigações da comissão, sequer foi citado nos depoimentos prestados até agora à Justiça Federal e à CPI pelos donos da Planam, Luiz Antonio Trevisan Vedoin e Darci José Vedoin.
Os documentos também jogam água no moinho que liga o PSB às irregularidades praticadas na aplicação de recursos federais. Na última segunda-feira, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), um dos sub-relatores da CPI, causou polêmica ao acusar o PSB de ter aparelhado o Ministério da Ciência e Tecnologia, possibilitando o uso fraudulento de recursos destinados ao programa de inclusão digital, utilizando-se inclusive dos serviços da mesma Planam.
O PSB reagiu, pedindo a cassação de Gabeira e prometendo processá-lo por calúnia e difamação, além de exigir indenização por danos morais. Há elementos, no entanto, para suspeitar que o partido tem muito a explicar quanto à aplicação de verbas federais.
Não bastasse a inclusão de quatro parlamentares do PSB na lista de 72 divulgada ontem, pertence aos quadros do partido o prefeito de Colatina (ES), Guerino Balestrassi. O município comprou em 2001 um ônibus e equipamentos, para funcionamento de uma unidade móvel de saúde.
O processo apresenta indícios de superfaturamento, descumprimento da Lei de Licitações e pelo menos dois fatos curiosos: a participação da onipresente Planam e o fato de a prefeitura, após ter adquirido o veículo, ter demorado quase dois anos para transferi-lo para o seu nome, apesar de ter sido alertada quatro vezes, por escrito, pelo Ministério da Saúde sobre o assunto.
A origem do processo
O ônibus, com motor Volkswagen, foi vendido "liso", isto é, sem assentos ou acessórios, por R$ 52.950,00 da Santa Maria Comércio e Representações Ltda., uma das 14 empresas de fachada controladas pelos donos da Planam. Profissionais da área ouvidos pela reportagem informaram que um veículo do tipo não poderia custar mais de R$ 12 mil.
Também controlada pela Planam é a empresa Comercial Rodrigues, que recebeu R$ 43.050,00 para vender os equipamentos médicos que foram instalados no ônibus.
Mas essas são apenas algumas anomalias verificadas durante o processo de aquisição do ônibus.
Em 4 de maio de 2001, Guerino Balestrassi, que se reelegeu para o cargo de prefeito em 2004, encaminhou ao Ministério da Saúde requerimento de convênio entre o ministério e a prefeitura de Colatina. Com o valor de R$ 100 mil, ele previa a aquisição da unidade móvel de saúde e a realização de outras atividades, tais como contratação de pessoal e compra de equipamentos.
O documento foi incluído no pedido de emenda individual ao orçamento federal apresentado pelo ex-deputado José Carlos Elias (PTB-ES), atual prefeito de outro município capixaba (Linhares). No dia 16 de maio de 2001, Elias encaminhou ofício ao então ministro da Saúde, José Serra (PSDB), comunicando que havia formalizado a emenda e repassando as especificações técnicas referentes ao projeto.
À época, Guerino valeu-se de um dado falso para justificar a necessidade da unidade móvel. Disse que 35% da população do município vive na zona rural, "o que dificulta o acesso aos pólos de saúde". A despeito da importância do veículo, o percentual verdadeiro é outro: 7%.
A licitação
Em 1º de novembro de 2001, foi realizada em Colatina a licitação para a aquisição do ônibus. Três empresas foram convidadas a apresentar propostas. Dentre elas, a Santa Maria, que seria a vencedora. O próprio Luiz Antonio Vedoin declarou à Justiça que a empresa era usada para acobertar as fraudes da Planam.
Durante a análise da documentação das empresas, a comissão permanente de licitação da prefeitura de Colatina desclassificou duas delas: a Cancela S/A Veículos e Máquinas Agrícolas e a Sam Marino Ônibus e Implementos Ltda. por falta de documentos. Ou seja: restou uma só licitante, ligada à família Vedoin.
Nesses casos, já que a possibilidade de competição inexiste, o procedimento regular é o cancelamento da licitação e a abertura de novo certame, de modo a preservar os interesses do órgão público contratante.
A prefeitura de Colatina fez diferente. Continuou a licitação, dando vitória à Santa Maria, apesar do preço salgado que a empresa propôs.
Três empresas também foram convidadas para a licitação referente aos equipamentos da unidade móvel, realizada na mesma data. Dessa vez, duas firmas utilizadas pela máfia das ambulâncias estavam presentes: a Comercial Rodrigues e a Leal Máquinas Ltda. Comércio e Representações.
A Leal e a terceira participante, a Nacional Comércio e Materiais Hospitalares Ltda. (que não pertence aos Vedoin), foram desclassificadas pela ausência de cópias autenticadas. A legislação em vigor atribui ao órgão licitante, por meio de pessoa autorizada, a possibilidade de conferir e atestar a autenticidade de documentos, durante o próprio ato licitatório. Mais uma vez, a licitação não foi cancelada e a Comercial Rodrigues foi contratada por R$ 43.050,00.
A difícil arte de transferir um veículo
Um fato curioso ocorreu logo depois de encerrado o processo de licitação. A prefeitura levou quase dois anos para tomar uma providência banal, a transferência de nome do titular do veículo. Nesse período, o tema rendeu intensa troca de correspondência entre o Ministério da Saúde e a prefeitura.
A novela começou em 8 de agosto de 2002, quase dez meses depois da compra do veículo, quando a Divisão de Convênios e Gestão do Núcleo Estadual do Ministério da Saúde encaminhou relatório à prefeitura de Colatina aprovando a licitação referente à aquisição da unidade móvel. No entanto, o órgão federal constatou que havia uma irregularidade no processo: a documentação do veículo ainda não tinha sido transferida para o nome da prefeitura.
Como até o dia 27 de setembro o Ministério da Saúde ainda não tinha recebido nenhum documento comprovando a transferência, enviou novo ofício reiterando o cumprimento da recomendação de transferir logo o nome do titular do veículo.
A reposta ao ministério só veio em 2 de dezembro, mais de dois meses depois, quando o secretário municipal de saúde, José Tadeu Marino, afirmou que as providências já estavam sendo tomadas.
No entanto, no final de maio de 2003, o ministério nada recebera. No dia 30 daquele mês, um novo requerimento foi encaminhado à prefeitura de Colatina. O documento também não surtiu efeito, e, em 30 de junho, novamente o órgão enviou ofício para o município.
E finalmente, para felicidade dos agentes da Divisão de Convênios, em 30 de julho a novela teve fim. Nesse dia, a subsecretária municipal de Saúde, Mauriceia Soares Pratissolli Guzzo, enviou ao ministério a cópia do documento de transferência, datado de 23 de julho de 2003 (um ano e oito meses após a data da licitação).
Prefeito se recusa a falar
Desde terça-feira, o Congresso em Foco tenta ouvir o prefeito Guerino Balestrassi a respeito do caso. A reportagem ligou várias vezes para o seu gabinete e para o celular. Cobrada sobre o fato, a assessoria disse que todos os recados foram transmitidos ao prefeito, que, até a noite de ontem (quinta, 10), não deu retorno aos telefonemas.
Deixe um comentário