Sionei Ricardo Leão
A possível anistia do marinheiro João Cândido pelo Congresso Nacional, projeto de lei que vai entrar em pauta no plenário da Câmara dos Deputados, tem dimensões no âmbito da igualdade racial, da real democracia e da política de segurança nacional, com foco nas Forças Armadas brasileiras. O trocadilho que o nome de João Cândido provoca é inevitável, uma vez que sua epopéia deu-se em meio a uma organização que ostenta a alvura de seus uniformes, mas que em 1910, teve que render-se a praças, na maioria, de tez retinta sob o comando de um mais corpulento que a história grassaria, entre outras, analogias como o "dragão do mar".
De um lado da mesa, está a "nobre Armada", uma das alcunhas por que é tratada a Marinha de Guerra, sem medo de errar a mais conservadora entre as forças singulares e, possivelmente, uma das mais tradicionais instituições brasileiras. Tanto que oficiosamente, circulam informações sobre focos monarquistas vigentes em meio à oficialidade da Armada. Até porque a república, de 1889, projetou desde então muito mais o Exército, do que as fileiras de almirantes.
O apego à tradição não se dá por acaso na Marinha de Guerra, pois a força se considera resultado dos contingentes que acompanharam, ou melhor, ajudaram a escoltar Dom João VI, por ocasião de sua fuga de Portugal, em 1808. Por todas essas razões, para o comando do "cisne branco", todos esses anos foi inconcebível anistiar um negro alistado a pedido de escravagistas gaúchos entre os marujos – sentou praça como a Marinha na condição de grumete, em 10 de dezembro de 1895. Homem que mais tarde tornar-se-ia ícone rebelde e audaz condutor de homens e naus, contra o governo central, então sediado no Rio de Janeiro.
Mais do que isso, João Cândido figurava enquanto insurreto nos arquivos militares, mas no cancioneiro recebia homenagens como "Dragão do Mar", "Mestre-Sala dos Mares" e "Almirante Negro". Para o comando da Armada, portanto, sempre vigorou a compreensão de ser mais pertinente torná-lo um tema a ser legado ao esquecimento. Foi assim até que uma ousada senadora federal, eleita por conta da militância entre seringueiros do Acre, mulher negra, jovem e franzina, decidiu apresentar uma proposição em favor de João Cândido, um projeto de lei com dois parágrafos, mas contendo um texto robusto o bastante para provocar uma tempestade nos mares do Ministério da Defesa.
A "Câmara Alta", o Senado, não se conduziu de modo reacionário e aprovou a matéria, em julho de 2002, proposição que emperrou na Casa do povo, ou seja, na Câmara dos Deputados, onde a assessoria parlamentar da Marinha de Guerra acompanhava a tramitação do projeto de lei meticulosamente.
Acordos palacianos, pressões do movimento social e articulações parlamentares conseguiram vencer a resistência da Armada, a ponto de permitir que a matéria volte a ser debatida e, quiçá, aprovada. Nada mais oportuno do que o mês de maio como referência para esse avanço. A historiografia não deu a ênfase devida no que se refere a demonstrar que João Cândido e seus companheiros foram venturosos em encerrar um resquício sórdido da mentalidade escravista, que se mantinha em vigor na Marinha de Guerra, mais de uma década após a assinatura da Lei Áurea, a opção de manter a disciplina por meio da chibata.
Na mesma medida, permanece pouco explorada a relação do protagonismo de João Cândido e as influências que ele teria sofrido do sindicalismo britânico, em razão de ter visitado a Inglaterra a fim de retornar a bordo do encouraçado Minas Gerais, vaso de guerra que o Brasil comprara junto aos estaleiros daquele país para reequipar a Marinha de Guerra. A igualdade racial, nesse caso, está implícita ainda que não tivesse sido declarada enfaticamente, pois nas fileiras da marujada a grande maioria era de negros e mestiços, enquanto que nos postos de oficiais predominavam os filhos das classes dominantes, por assim dizer brancos.
*Sionei Ricardo Leão é jornalista e repórter da Clicatv, do Jornal de Brasília. Dirigiu seis documentários, entre eles, o Kamba’Race, que recebeu o Prêmio Palmares de Comunicação (2005) do Ministério da Cultura. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira-DF).
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