Fátima Cleide*
Depois de o Senado aprovar a regularização fundiária da Amazônia, medida sem dúvida importante para combater o desmatamento, novas batalhas estão postas, entre elas impedir a retirada do licenciamento ambiental da esfera federal, e reverter dispositivos do Projeto de Lei de Conversão aprovado, proveniente da MP 458.
As regras criadas para a regularização fundiária envolvem cerca de 296 mil posses de até 1.500 hectares em terras públicas da União, atingindo 436 municípios da Amazônia Legal. São 67 milhões de hectares, e seu valor não há quem possa precisar: falamos da Amazônia, superlativa em tudo o que nela se encontra, cobiçada aqui e lá fora.
Não se trata, como certos setores do agronegócio querem infundir na sociedade, de apenas resolver a titulação de terras. O que está em jogo, e 21 senadores tiveram esse entendimento ao votar os destaques propostos pela senadora Marina, é algo mais do que ser proprietário legal de um patrimônio ocupado até dezembro de 2004, dele podendo se desfazer no prazo de três ou dez anos, conforme prevê a MP.
Ponto, aliás, a que até mesmo adversários do PT avaliaram como injusto, pois desrespeita o principio constitucional da isonomia. Tituladas, as áreas acima de quatrocentos até 1.500 hectares poderão ser alienadas em apenas três anos, e as propriedades de até quatrocentos hectares somente após dez anos.
Incluído pela Câmara e mantido na votação do Senado, esse fator, aliado à permissão para que a “ocupação indireta” – a meu ver uma titulação de área em nome de preposto –, seja beneficiada, revela-se como um incentivo à grilagem, à manipulação na compra e venda de terras tanto como pessoa física quanto por pessoa jurídica, possibilitando uma nova onda de pressão ao se buscar terras na Amazônia.
No projeto original, enviado pelo governo, a venda das terras só poderia ser feita após dez anos para dificultar a grilagem, a falsificação de documentos e a dupla obtenção de terras. Nossa esperança era que esse cuidado fosse restabelecido pelo Senado, mas isso não ocorreu.
Desde que a regularização fundiária foi aprovada, muitas declarações foram publicadas na imprensa. Um dos argumentos, para mim revelador do desprezo que se tem pela justiça social da terra, é o de que, nós, do PT, estamos confundindo regularização fundiária com reforma agrária ao bradar contra a ocupação indireta.
Ora, se queremos iniciar um processo de ordenamento do território amazônico, passando a conhecer quem ocupa terras públicas na região, não podemos começar tarefa tão imprescindível para a adoção de iniciativas e políticas públicas abrindo brechas para a grilagem, para a manutenção da má distribuição de terras, para a iniqüidade e descaso para com a boa utilização dos recursos naturais da Amazônia.
Não podemos ignorar os números. Eles revelam que, embora sejam maioria, 81%, os posseiros que se caracterizam como mini e pequenos produtores (até quatrocentos hectares) ficarão com 7,8 milhões de hectares; os médios e pequenos (de quatrocentos a 1.500 hectares), 12% do total, ficarão com 8 milhões de hectares e os grandes, que são apenas 7%, ficarão com 49 milhões de hectares. Como se vê, não há justiça social.
No último final de semana estive em municípios da região Sul de Rondônia, onde a agricultura e pecuária prevalecem na economia. Todos estão preocupados com a reconcentração de terras que a MP poderá causar. É uma tese que também angustia ambientalistas e pesquisadores da Amazônia.
Guardiã da maior reserva florestal do planeta, vítima de pilhagem incessante, a Amazônia é preciosa demais para ser encarada apenas como nacos de terra tituláveis e negociáveis. Não há lugar para a tibieza e a omissão diante do atual paradoxo da humanidade – conservar ou gastar recursos naturais a qualquer custo.
Eu acredito que os melhores tempos estão diante de nós: é preciso conhecer, defender e investir na sustentabilidade da Amazônia, privilegiando o povo que nela trabalha e produz, para fazer a diferença. Perante nós mesmos e perante o mundo.
*Fátima Cleide (PT-RO) é senadora da República.
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