Matheus Boni Bittencourt *
O deputado federal pelo PMDB fluminense Eduardo Cunha, atualmente presidente da Câmara dos Deputados, afirmou que pretende consultar o povo, por meio de plebiscito, a respeito da redução da maioridade penal. Pergunto-me: por que restringir esse súbito amor pela democracia direta a esse tema, e não consultar o povo também a respeito da dívida pública, privatizações, direitos trabalhistas, privilégios de legisladores, financiamento de campanhas eleitorais, reforma tributária, tarifas de serviços públicos ou distribuição da propriedade rural e urbana?
Os objetos de consulta que eu sugiro são mais legítimos para consulta popular do que o sugerido por Eduardo Cunha, por serem assuntos de verdadeiro interesse público, e não relativos a direitos individuais. Há, ainda, questões mais delicadas sobre a maioridade penal e responsabilidade criminal que precisam ser discutidas com mais cuidado.
Muita gente ainda confunde a maioridade penal com a responsabilidade criminal. A segunda, no Brasil, começa aos 12 anos de idade. E a partir de então que o cidadão pode ser detido e condenado por crimes. Mas até os 18 anos ele é “inimputável”, o que não quer dizer a mesma coisa que “impunível”. Ocorre que as punições se dão em regimes diferenciados. Entre os 18 e os 70 anos o cidadão cumpre penas de prisão no sistema penitenciário, de acordo com as punições prescritas no Código Penal. Dos 12 aos 18, cumprem penas no sistema dito socioeducativo, na verdade prisões para adolescentes, por punições prescritas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um daqueles textos que são mais atacados do que realmente lidos.
Vale dizer: a ideia muito difundida de que adolescentes são “impuníveis” é um mito. São apenas punidos de maneira diferenciada, o que resulta legalmente em menos tempo de prisão e mais atividades educativas no cárcere. Mas sabe-se que as leis nem sempre são cumpridas na íntegra: é sabido que muito do sistema dito socioeducativo pouco difere do sistema penitenciário voltado para os adultos, e a superlotação e violência sistêmicas raramente permitem a oferta de educação para os internos. Na prática, portanto, a maioridade penal já foi reduzida em relação às condições de internação.
A única consequência previsível da redução da maioridade penal pela PEC 171 na Câmara dos Deputados é o crescimento da população carcerária jovem, pelo aumento do tempo de prisão aplicado aos adolescentes. Especialmente porque a redução nessa proposta é geral, abrangendo todo e qualquer crime. Dentro dessa tendência, destaca-se o aumento da proporção de presos negros, jovens e de baixa escolaridade atrás das grades. Ou seja, servirá para ampliar o encarceramento seletivo dos desprivilegiados e os gastos públicos com a lucrativa indústria prisional.
A redução da maioridade penal significaria maior segurança para o conjunto da população? Tudo indica que não. A observação dos fatos mostra que a taxa anual média de homicídios (o crime cujo registro é mais confiável) cresceu mais de 50% desde 1990 até 2010, enquanto a taxa de encarceramento quase triplicou no mesmo período, sem contar a taxa também crescente de adolescentes sob “medidas socioeducativas em regime fechado” (leia-se: presos). Os dados sobre roubos e estupros são incompletos e pouco confiáveis, mas as pesquisas nacionais de vitimização de 1989, 2009 e 2012 não mostram qualquer indício de redução dos crimes violentos, nesse período de crescimento acelerado do número absoluto e relativo de presos. Quem estiver interessado em melhoria da segurança e inibição da violência, é melhor apoiar as seis prioridades sugeridas por estudiosos do crime durante as eleições de 2014 – ideias que nenhum dos principais candidatos abraçou.
Não podemos esquecer que grupos violentos como o PCC paulista e os “comandos” cariocas formaram-se no interior das prisões, lugar onde ainda selecionam os seus “recrutas”. A redução da maioridade penal aumentaria o risco de recrutamento de jovens ainda mais cedo como “soldados” de bandos atuantes no tráfico de drogas e outros mercados ilegais. Ao invés de prover maior segurança, será criado um novo fator de riscos.
É verdade também que os adolescentes participam dos crimes violentos mais como vítimas do que agressores. Cometem 1% dos homicídios dolosos e são vítimas de 17%. Também abundam os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, muitas vezes na forma de exploração sexual visando o lucro. Nosso país não tem se destacado pela preocupação com o bem-estar dos jovens das camadas economicamente desfavorecidas. O ensino médio público se mostra a área mais problemática do sistema de ensino brasileiro, a taxa de homicídios de jovens é o dobro da média e o desemprego juvenil é três vezes superior à média.
Vamos assim que a redução da maioridade penal é mal compreendida, pela confusão com a responsabilidade criminal. A única consequência previsível da medida seria a expansão seletiva do encarceramento, impondo mais gastos públicos com serviços penitenciários e reforçando a violência institucional aos jovens pobres e negros, alvos preferenciais da repressão. Como a experiência mostrou que mais prisões não equivalem a menos crime, mas apenas a maior cooptação de detentos por grupos violentos, a redução da maioridade penal servirá apenas para a produção de mais risco criminal entre a juventude pobre.
Sendo assim, são insustentáveis todos os argumentos que buscavam apresentar a redução da maioridade penal como um meio eficaz de trazer mais segurança. Resta apenas o discurso moral, baseado em princípios, e não em fatos. Contra razões morais, não há argumentos empíricos. O que não exime de avaliar a sua validade jurídica, coerência e consequências, possibilitando uma discussão racional.
Alguns dizem que o adolescente deve ser punido como adulto, porque pode votar aos 16 anos. Os defensores desse raciocínio, por coerência, deveriam propor igualmente que a partir dos 16 anos todos possam adquirir uma carteira de motorista ou um porte legal de armas, casar-se, prostituir-se, fazer operação de mudança de sexo, viajar sozinho ao exterior, comprar carros, bebidas alcoólicas, cigarros e materiais pornográficos, se expor em material erótico ou pornográfico na mídia, etc. Por que reduzir a maioridade penal, e não a civil?
Outras pessoas acham que as punições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente são muito brandas em se tratando de alguns crimes particularmente bárbaros, que ofendem a sociedade e destroem moral e/ou fisicamente a vítima. E sugerem que seja reduzida a maioridade penal apenas para os “crimes hediondos”. Ocorre que entre os crimes hediondos está o tráfico de drogas ilícitas. O crime sem vítimas que é a motivação mais frequente das prisões, principalmente pela detenção em flagrante delito de pessoas pobres desarmadas com pequenas quantidades de drogas ilícitas.
Logo, mesmo limitando a redução da maioridade penal aos crimes hediondos, far-se-iam sentir a maior parte dos seus efeitos perversos descritos acima, pela ampliação da repressão a “aviõezinhos”, “vapores”, “mulas” e usuários pobres (enquanto os traficantes mais ricos seguem impunes). Apenas nas hipóteses de descriminalização de drogas ou retirada do tráfico de entorpecentes do rol de crimes hediondos, ambas hoje remotas, as consequências perversas seriam reduzidas ao mínimo. Uma variante dessa proposta é defendida por Ari Friedenbach, pai de uma moça barbaramente estuprada e morta por uma quadrilha de quatro adultos e um adolescente:
“Em vez de discutirmos idade penal, devíamos colocar na pauta a responsabilização do menor… (por) latrocínio, homicídio, sequestro, estupro e roubo. Após a prática do crime o menor deve passar por um exame, realizado por uma junta composta por psiquiatras, juízes, psicólogos, etc. Ela avaliará se ele tem consciência do ato praticado. Caso comprove que sim, o juiz, por meio de uma alteração legal e não constitucional, deve ter a possibilidade de emancipar esse menor para que ele seja julgado e, se condenado, iniciar o cumprimento da pena numa unidade prisional da Fundação Casa. Assim que completar a maioridade, deverá passar para o sistema prisional comum.”
A razoabilidade dessa proposta, vinda de uma vítima indireta de um crime bárbaro que teve a participação de um adolescente (e quatro adultos), não a exime de um ponto questionável: a ideia de um exame médico-legal de maioridade, o que talvez dificultasse ainda mais a aplicação igualitária da lei a adolescentes de famílias ricas e pobres. Por fim, resta um ponto, discutível nesta como nas outras propostas de redução: a sua validade jurídico-constitucional. Segundo Dalmo Dalari,
“nenhuma proposta de emenda pode atingir o núcleo fundamental da Constituição, as chamadas cláusulas pétreas. Neste caso da idade de responsabilidade penal, existe uma cláusula expressa estabelecendo que ela se inicia aos 18 anos. Isso é direito e garantia fundamental das pessoas. Portanto, é uma cláusula pétrea. A simples proposta já uma inconstitucionalidade”.
Sendo assim, os fatos sociais nos levam a crer que a redução da maioridade penal não seria útil para tornar a sociedade mais segura, sendo, pelo contrário, portadora de efeitos perversos da expansão seletiva do encarceramento: mais racismo institucional, mais gastos públicos com prisões e mais risco de cooptação de jovens por bandos armados atuantes no tráfico de drogas e outros mercados ilegais. Portanto, a possibilidade de um debate racional se reduz a decidir se uma redução restrita da maioridade penal é juridicamente válida e moralmente preferível à continuidade das regras atuais.
* Matheus Boni Bittencourt e graduado e mestre em Ciências Sociais.
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