Marcelo Mirisola*
Eu estava sossegado no sítio do Napão. Naquelas de tanto fazia se havia morrido ou virado um passarinho. Quase perto da minha “natureza selvagem”, dez dias comendo miojo e sem fazer a barba, mais um pouco ia atravessar a outra margem, e dar um alô para Cris McCandless.
Mas domingo, dia 16 de março, tive que ir à lan house para escrever a crônica da semana. Eis que me deparo com o jornal Folha de S. Paulo. Na manchete, a Bahia de todos os Santos, a Bahia de Jorge Amado, lindamente estampada.
Ocorre que a Companhia das Letras está relançando a obra do escritor baiano. A linda foto de São Salvador da Bahia de Todos os Santos não era um anúncio, mas manchete. Não se trata de coincidência. A campanha é explícita, e ninguém faz questão de disfarçar. No mesmo jornal, um dia depois, vejo o sambista Chico Buarque de Hollanda posando de garoto propaganda para a referida campanha. Muito sério e bonito como sempre, dessa vez numa peça publicitária (paga), ele finge ler algum livro do baiano: “Por que Jorge é Amado?”. Esse é o slogan.
O país inteiro tremeu, e com razão, diante da fatura do cartão corporativo da ex-ministra da Igualdade Racial Matilde Ribeiro. Ela havia se esbaldado em free shops, churrascarias e hotéis quatro estrelas de Copacabana. Escândalo!
A coisa foi parar numa CPI mequetrefe, discutem-se medidas moralizadoras. Beleza. Mas e agora, diante desse deboche chancelado pela Folha de S. Paulo e financiado pela Companhia das Letras (Unibanco), ninguém reage? Por quê?
Ora, de imediato alguns diriam: nesse caso não há dinheiro público envolvido. Eu retruco: mas há muita gente sendo enganada, há uma estratégia publicitária nefasta atrás disso tudo. Explico. As agências que inventam políticos e sabão em pó, agora, estão vendendo Jorge Amado como se fosse um grande escritor, há o mesmo modus operandi e desprezo pela inteligência alheia, o mesmo sangue gordurento que pingou nos espetos corridos da ex-ministra, a mesma má-fé disfarçada de ação cultural.
Por falar em Unibanco: penso que todo “produto cultural” (filme, revista, festival de literatura, etc, etc.) que os irmãos Salles patrocinam, produzem, dirigem, enfim, qualquer “produto” que, direta ou indiretamente, tenha a chancela deles, está – no mínimo – sob suspeição. A mesma coisa vale para o Itaú Cultural e afins.
Não dá para engolir banqueiro dando pinta de artista. Vejam só. Agora, Walter Salles e seus colegas banqueiros, além de culturetes, têm consciência social e ecológica, e trabalham para a salvação do planeta. Não é comovente? Doze por cento ao mês, nem parece banco… Parece o quê? Cinema? Paraty? Piauí?
Jack Kerouac é a próxima vitima de Walter Salles. Ele vai adaptar On the road. Aposto que vai fazer a mesma coisa que fez com Diários de motocicleta (guardadas as diferenças entre um livro e outro), isto é, vai estragar tudo. Então me pergunto: será que Walter Salles acreditou nas “verdades” do diário de Che? Por que ele teria omitido o olhar de sangue do futuro assassino? Teria sido por consciência social? Ou por afinidade? Talvez a mesma afinidade que o irmão dele, o também lírico, e também cineasta, Joãozinho Salles, teve com o mordomo patético?
Quase impossível dissociar os banqueiros dos cineastas, no caso dos irmãos Salles, é impossível, não consigo. Parece birra. Ainda que seja birra, não é gratuita: na ocasião em que filmava Notícias de uma guerra particular (não me lembro se era a história de Marcinho VP ou se o traficante dava consultoria ao banqueiro), Salles concedeu uma entrevista. Em dado momento, diz algo do tipo: “Marcinho tem uma centelha de humanidade, por isso resolvi dar uma bolsa a ele: para escrever um livro”.
Naquela época eu estava numa merda federal (aliás, continuo), e escrevia meu Azul do filho morto. E o banqueiro, o mauricinho lírico, sustentava um traficante foragido da Justiça. Se não me engano, o cúmplice de Salles vivia na Argentina. Cadê o livro do traficante? Para isso que o Unibanco cobra os juros que cobra? Não agüento mais ver ricaço usar calça rasgada para dar pinta de maloqueiro, tudo mentira. Tem um cinismo e um deboche nessa “postura”. Isso se reflete no Diários de motocicleta claramente.
Também se reflete na campanha da Companhia das Letras para relançar Jorge Amado; num ponto, aliás, o autor foi profético, tenho que dar o braço a torcer: no Brasil, o banqueiro lírico divide a picanha com a ministra negra, e o traficante mulato freqüenta o mesmo free shop do editor judeu, que divide sua preocupação ecológica com o publicitário nazista que vai fazer a campanha pro político corrupto que, por sua vez, tem uma coluna no jornal que não tem o rabo preso com ninguém, sei – misturamos pra valer, todos artistas, uma canalhada só. Jorge Amado tinha senso de humor, inegável.
O resultado disso tudo é medo e apatia. Ninguém pode exercer o talento sem o aval dos departamentos jurídico e de marketing e a chancela das grandes corporações. Rabo preso geral. Não é gratuito o fato de tanto covarde se dar bem por aí. E o mundo deles é chato, muito chato. Jorge Amado está de bom tamanho para Washington Olivetto.
Numa ocasião – só para contar uma historinha… – o baiano mostrou seus escritos para Graciliano Ramos. O autor de Angústia disse que a praça dele era outra, e o dispensou. Tirando A Morte e a morte de Quincas Berro D’água, não sobra quase nada. Será que Chico Buarque leu Angústia, de Graciliano Ramos? Porra, Chico, por que você colabora com esse engodo?
Executivos não ocuparam somente o lugar dos artistas. Não há lugar para a grandeza. Os psicanalistas, antropólogos e sociólogos, e os técnicos em geral, é que dão as cartas. Se você não tiver um projeto e um cronograma, não é ninguém. A Petrobras concede bolsas para cineastas, músicos, teatrólogos, artistas plásticos, etc. No caso dos escritores, exige planilha. Fico pensando: como teria sido o “projeto” de Kafka ao escrever Carta ao Pai? Foder o Pai, naturalmente. Queria ver como é que Kafka se explicaria à Petrobras. Se não fizer planilha, não tem bolsa.
Um cara como Antonio Maria, hoje, seria inviável. Não dá para imaginar um Nelson Rodrigues, um Paulo Mendes Campos, um Rubem Braga num mundo onde Jairo Bouer e Rosely Sayão são cronistas. Quando leio o dr. Drauzio Varella escrevendo (uma crônica?) sobre placentas e divisão celular… dá vontade de pedir o chapéu. Otto Maria Carpeaux, que não tinha nem diploma primário, hoje seria descartado em detrimento de um chato qualquer da USP, com os devidos mestrados e doutorados carimbados no rodapé do texto. O que dizer da inconseqüência febril e bêbada de um Carlinhos Oliveira? Ou de um Tarso de Castro?… essa é a questão.
Evidentemente esses caras viviam em outra época, e deram uma “morrida”, mas eu conheço gente que desperdiça o talento em blogues, e cujo trabalho jamais seria reconhecido num processo de seleção de uma dessas corporações culturais da vida. Enquanto isso, Jorge é Amado, por quem, hein?
Jorge é amado por Chico e Caetano (garotos propaganda e “autores” da Companhia das Letras), e também é amado por Gil.
Jorge que é amado, e que seduz todos os cinco sentidos, ele que traduz o cheiro das cores, perfumes, sabores e texturas, ele que trouxe a fé nos terreiros e o suor dos trabalhadores para seus livros, mas sobretudo falou da sensualidade da mulher brasileira, inesquecíveis Gabriela, Tieta, Dona Flor,Teresa Batista, tão marcantes e inesquecíveis para Gilberto Gil que é baiano, e é claro, jamais poderia deixar de amá-lo e amá-las, Gil e Carlinhos Brown, que amam as mulheres de Jorge, imagino, com a mesma intensidade com que receberam Condolezza Rice em Salvador, e a amaram, Condolezza, a mensageira da morte. Sei lá, mas eu tenho a impressão de que alguém está me fazendo de otário.
Não bastasse, ainda temos a tecnologia para invadir (e empobrecer) a vida das pessoas. O que aconteceu com as curvas das mulheres? Por que os filhos da Elis Regina são tão chatos?
Nesse Brasil bundão, onde Jorge é Amado, banqueiro nem parece banqueiro, jogador de futebol paga dízimo para sonegadores de impostos, nesse lugar, onde a revista Rolling Stone paga pau pro Faustão e pra Ivete Sangalo, Deus também é quentinho! Cazzo! O que aconteceu com Serginho Chulapa, Oswald de Andrade, Paulo César Caju, Glauber Rocha, Pasolini?
Outro dia entrevistei Ugo Giorgetti, e perguntei a ele o que achava de Pedro Bial ter “levado” Guimarães Rosa para o cinema. Seria o caso de incluir Bial no mesmo código penal que recomenda a pena de morte para consumidores de esfirra de frango, e pizza com borda recheada? Vejam o que ele diz: Bial devia decorar o Grande Sertão de cabo a rabo e declamar um trecho na abertura e no fechamento de cada episódio do Big Brother. Sem merchandising.
A proposta de Giorgetti é interessante. E dá uma pista – e talvez explique – por que Jorge deve ser obrigatoriamente Amado no Brasil, e porque a mentira que pretende ressuscitá-lo é tão fétida quanto o apodrecimento do seu deplorável cadáver. A lógica, afinal, é a mesma. Amor com amor se paga.
PS: Proibidão no Jornal do Brasil. Clique aqui para ler minha entrevista na íntegra.
*Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).
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