Eis a parte inicial do meu conto (conto? Novela? Também ainda não sei) sobre minha irmã morta, lembrando que fazer ficção a partir da própria dor (enquanto ainda está doendo) é o mesmo que subornar o diabo pra nos guiar numa excursão pelo inferno. Até porque, afinal de contas, escritor é aquele sujeito que só ganha o direto de se foder e ser aplaudido por isso.
Por Amanda
Adriano,
Hoje é sábado e eu perambulo pela casa gritando o nome dela, clamando a ausência de Amanda, chorando desesperadamente e então compreendo: o tempo, a memória seletiva – sempre tendendo a fixar o bom e descartar o ruim para curar a dor – está fazendo com que vá se apagando a lembrança do horror vivido lado a lado à doença e à loucura, que não deveriam ser percebidas e sentidas separadamente, mas não foi assim, dado o alívio obtido com sua morte, morte do corpo daquela cuja alma já havia morrido muito antes, corpo que era absolutamente inútil e impossível continuar vivo.
Quer dizer, que ela o mantivesse e que nós a ajudássemos a mantê-lo vivo, contudo, essa terceira personalidade que se instaura, a despeito de nós e dela mesma, composta por nós, ela e os próximos mais aproximados, subterrânea e sofregamente, conspirava no sentido contrário, isto é, do declínio e da morte, dum maldito arremate para aquela cujo corpo, se curado, daria sustentação unicamente à sua loucura – algo infinitamente mais doloroso do que a própria morte – a loucura, esta sim, sem espaço nem tempo junto aos vivos, aos sãos, àqueles portadores de cédulas de identidade e contas bancárias.
Como se isso fosse vida. Falando metafisicamente, claro. Que ninguém vai brincar aqui com o Banco Itaú, a Vivo ou a Net e todas essas coisas que realmente fazem parte da vida que vale a pena ser vivida, mas que porra.
Evidentemente – a coisa só agora fica clara –, é por isso que ando com medo de escrever, que não escrevo há muito tempo, apenas alimentando a fuga e a hipocrisia, estes demônios gêmeos.
Então, subitamente me dando conta do que estou tentando dizer, compreendo a absoluta necessidade de deslocar o destinatário desta, de Adriano, filho dela e meu sobrinho – meu único parente de sangue ainda vivo – até porque este seria o leitor, aquele que é afetado emocional e diretamente pela literatura, mas agora ainda não, neste momento não (ou nunca), ele não, muito menos como leitor sobretudo privilegiado, posto que antes de tudo o filho de sua mãe não teria estrutura, nem física tampouco emocional, pra suportar tudo isso que a mim mesma é insuportável, então decidi te tornar, Juliano, pai de Adriano, meu destinatário e leitor privilegiado, até porque eu falei em “demônios gêmeos” e então subitamente compreendi que a cumplicidade mais íntima é tua, bem como a objetividade para examinar como que de longe, como que do lado de fora, esta dor sendo agora minuciosamente inventariada.
E eu tenho vontade de me matar só de escrever isto – fazer duma vida e duma morte um inventário minucioso – como a liquidação dos bens dela, dos livros e teses e roupas e toalhas de banho e porta-retratos e DVDs, todos e cada um dos objetos – brincos quebrados, comprimidos, dragõezinhos de cerâmica, a fotografia do Cerro de Buenos Aires – tudo aquilo que constituiu o espólio duma menina morta.
Porque ao fazer literatura vou ter que pegar pesado e nem eu quero ler isso, eu, o maldito leitor privilegiado por excelência. É como meter-se no inferno sem mapa ou guia que indique a saída. Mas que porra.
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