Conheci Ítalo Moriconi em 2000, quando ele estava organizando “Os Cem Melhores Contos do Século” para a Objetiva. E, coisa raríssima, – para mim e, acredito, também para ele – houve uma forte conexão imediata entre ambos, um mix de sintonia, paixão, amizade e déjá-vu! Como se fôssemos irmãos, aliados, cúmplices e amigos, infinitamente generosos e tolerantes, ao mesmo tempo e o tempo todo!Ponto de exclamação (a propósito: um escritor americano considera que jamais se deve usar pontos de exclamação: é como rir da própria piada).
É uma relação mais ou menos assim: se ficarmos sem nos falar ou encontrar durante, sei lá, vinte anos, quando retomarmos a conversa será como se o tempo não tivesse passado, quer dizer, a ligação se restabelece sem feed-back – tipo: “como vai/ e sua mãe/e sua mulher/ os filhos/ainda naquele emprego?”, e todas aquelas frases de circunstância que funcionam como band-aids e algodões substituindo falta de intimidade, desamor, indiferença, esquecimento.
Mas nossa ligação – minha e de Moriconi – funciona como o inconsciente coletivo (e Jung que me perdoe a impropriedade científica, em nome da licença poética), que tem o dom da ubiquidade: funciona para trás (visitando incessantemente o passado) e para frente (ocasionalmente prevendo o futuro) e tudo isso girando no intervalo dum presente eterno, percebem?
Bom, nossa relação é meio isso – esta plataforma – com os misteriosos fundamentos do nosso afeto inexplicável. Que começou em 2000. Moriconi, além dum tremendo mestre das letras, é um dos pouquíssimos teóricos da literatura brasileira contemporânea que temos na atualidade – quando RARÍSSIMOS SÃO AQUELES QUE SE ARRISCAM PARA ALÉM DOS ANOS 30/40 – ergo a originalidade (e a ousadia) só podia ser uma das suas grandes qualidades. Coincidentemente, ele andou formulando para a Literatura do século XXI uma proposta que ele chama de Plataforma 00.
Sintetizando suas idéias, a questão é (sorry, Ítalo, mas agora, vou tirar as aspas, para não encher o saco do leitor): por que o escritor (e sua obra) neste século XXI continua tão importante quanto no passado? Ainda tem algum valor a narrativa escrita frente à eficácia do cinema e da televisão? O que a escrita tem que nenhuma outra arte pode ter? (salvo ser a única arte para a qual se confere o Prêmio Nobel?(1)).
Para Ítalo Moriconi, a escrita tem a capacidade única de mimetizar a interioridade da mente (mimetizar = representar). O cinema, a televisão, a performance (inclusive a dança) podem projetar cenas que representam o interior da mente, mas elas não podem apresentar o processo do pensamento, que é verbal. Quando num filme se quer representar o pensamento de alguém, é necessário colocar uma voz em off dizendo o texto que mimetiza o pensamento. Tais exemplos apontam para o limite da linguagem cênica e para a irredutível necessidade da presença do verbal na esfera da expressão.
Literalmente, agora vou citar o autor: “Assim, a literatura sobrevive e renasce, neste século XXI, afirmando seu terreno no campo daquilo que se pode chamar Plataforma 00. O 00 é o mínimo definidor do literário. O mínimo definidor do literário se ancora no caráter único da escrita como arte, por ser a única capaz de mimetizar ou re-apresentar a intimidade do pensamento, a reflexividade do pensamento, a auto-reflexividade do sujeito individual. Todas as outras coisas que eram feitas pela literatura canônica do século XIX, na esfera do narrativo e do ficcional, são hoje em dia feitas em concorrência ou com vantagem pelas linguagens midiatizadas (aquelas que são perpassadas pelas imagens técnicas) da civilização do simulacro. Para começar, uma narrativa cinematográfica ou televisual traz sobre a literária a vantagem da rapidez.”
“Resta a escrita, paixão perversa do eu (pois é na compulsão pela escrita que o mais baixo, o blogueiro, e o mais alto, Proust, coincidem) É por aí que se pode entender também por que o registro da vivência imediata tornou-se um clichê (mais um) na literatura contemporânea, a começar pela proliferação dos blogs, de São Paulo a Bagdá.”
“É por essa redução ao mínimo comum multiplicável – Plataforma 00 – que se pode entender por que o fator autobiográfico (que alguns chamam de autoficcional) constitui o elemento mais vital na literatura atual. A literatura como fator de subjetivação, criação gráfica de um ponto de vista reflexivo sobre o mundo. A interioridade da mente possui duas dimensões igualmente importantes: uma dimensão dramática, cênica (muito trabalhada por Freud) e uma dimensão linguística (latifúndio de Lacan). A dimensão linguística é a dimensão reflexiva e auto-reflexiva.”
“Ao pensar, estamos falando. É esta fala silenciosa da mente que a literatura, e somente a literatura, pode captar.” (grifo meu)
Dá-lhe, mestre Ítalo, ainda temos você a nos lembrar, a nós, escritores, da nossa importância, nossa relevância e, naturalmente, que “há mais lágrimas derramadas por preces atendidas do que por preces em vão” (Santa Teresa D’Ávila). Naturalmente, você vai chorar depois, meu bem, por isso, cuidado com o que pedir aos deuses – eles podem te atender. E eu SEI do que estou falando, baby, podem apostar.
Uma última lembrança que resume nossa relação (e que exemplifica o que ele acaba de formular teoricamente): Ítalo tem uma filha que casou há poucos anos, e que IA entrar com o pai na igreja. Pouco antes, ele comentou comigo, entre orgulhoso e assustado:
“Já pensou, Márcia, eu entrando na igreja: vou me sentir o próprio Álvaro Gardel!”
(a propósito: “Memorial de Álvaro Gardel” é o título dum conto meu em homenagem ao meu pai), ao que a amiga (eu) lhe respondeu, provavelmente, com palavras de carinho e encorajamento.
Porque a escritora não teve palavras.
(1) Atenção: estas intervenções em itálico são minhas.
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