Márcia Denser
Os eventos ocorridos recentemente em Sampa – escalada de violência entre polícia e PCC, pânico generalizado na população – não deviam surpreender ninguém, sobretudo as cabeças bem-pensantes, os varões sabedores, sem contar a assustada pequena-burguesia, muitíssimo numerosa nessa cidade, que, é bom esclarecer, é um enclave de Primeiro Mundo no terceiro. Mas F. Jameson já cantou essa bola: num mundo globalizado, há cegueira no centro.
Cegueira que não percebe a invisible hand das inarredáveis circunstâncias históricas. Doze anos de governo estadual tucano (sem contar o federal) e sua escalada neoliberal impuseram progressivamente à população, com a conivência duma mídia canalha que lhe ocultava as manobras, a dessolidarização, a informalização, o desemprego crônico, o desmanche das políticas públicas e de projetos sociais.
Nas ruas, nos ônibus, nas lojas, as pessoas mostravam-se atônitas com tais demonstrações de "barbárie secundária", imaginando ser este apenas um fenômeno urbano carioca, isto é, a radicalização entre polícia e bandido e o estabelecimento de um governo paralelo sob o comando do crime organizado. Ledo engano. Para essa que continua a maioria silenciosa, que acredita na Veja e no Jornal Nacional, "enquanto não chega no quintal, a violência não existe".
O sociólogo alemão Robert Kurz, num livro que reputo mais que profético, mostra que o que hoje faz sofrerem as massas no Terceiro Mundo não é a exploração capitalista do seu trabalho produtivo, conforme rezava a esquerda. Mas sim, ao contrário, a ausência dessa exploração. Ninguém "precisa" da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de reprodução coerente.
A maioria da população mundial já consiste desses "sujeitos-monetários sem dinheiro", pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social, nem pré nem pós-capitalista, sendo forçadas a viver num leprosário social que já compreende a maior parte do planeta. E o mundo continua praticando impassivelmente e sem crítica precisamente aqueles negócios cujo andamento apenas acelera cada vez mais o desastre, que por fim não poupará ninguém. Mas enquanto ainda existe algum vencedor no mercado mundial, subsiste a ilusão de que a humanidade possa continuar reproduzindo-se nesse sistema e alcançar novos continentes.
Já em 1990, Kurz observava, com aquela implacabilidade e ausência de ilusões próprias do pensamento alemão: "As elites do Terceiro Mundo, que já vivem por detrás de guaritas e cercaram suas residências de arame farpado, deixaram de pôr o pé em vastas regiões de seu próprio país e somente ousam sair nas ruas armadas, pois obviamente já não consideram seres humanos a maioria dos seus chamados concidadãos. São essas minorias que se aferram às estratégias de privatização e abertura do FMI".
Pois é. Parece ser este o preço da globalização, enquanto puder ser pago: não só os criminosos, mas as próprias elites, têm que viver por detrás de grades. Não é óbvio que um sistema como esse deve estar totalmente errado, da base ao topo?
PS: Eu já havia fechado esta coluna (dia 17/5) quando, no dia seguinte, o governador Cláudio Lembo deu sua famosa entrevista – porque brilhante, inteligente e oportuna – à Folha de S. Paulo (leia mais). Enquanto tucanos – Serra, Alckmin e FHC – tomavam conhecimento dos fatos de longe (o mais possível) e esparsamente (dois ou três telefonemas), omitindo-se (como sempre) ou tentando nela envolver o governo federal de alguma forma negativa (como eternamente), Lembo provou que é possível dosar o político e o intelectual (que efetivamente é, inclusive como velho amigo dos escritores e intelectuais que se reuniam nas manhãs de sábado na livraria Cultura do bom Pedro Hertz). Sem subestimar o público leitor (como eu) e a partir do epicentro do furacão, ele fez uma análise precisa e lúcida dos fatos. Parabéns, governador!
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