Geraldo Serathiuk *
Nos anos de 1980, fui assistir com minha esposa ao filme cubano “A última ceia”, dirigido por Tomas Gutierrez Alea. Trata-se de uma obra que pode ser vista como um libelo contra a servidão dos negros naquele país e em todos os outros, simbolizando o bem inestimável que é a liberdade como expoente da dignidade humana. O filme mostra Cuba, nos finais do século XVIII. Uma plantação de açúcar e o respectivo engenho de refinação são explorados por um conde, tendo por mão-de-obra escravos negros. Na Quinta-Feira Santa, o conde convida doze dos seus escravos para cear consigo. Ao final, tinha como costume libertar alguns escravos. Quando então um escravo libertado vai saindo, volta-se e olha, perguntando ao conde, seu senhor: “Para onde vou”? No dia seguinte, tendo reencontrado o sentido da dignidade humana, os escravos revoltam-se.
Aquela imagem com aquele negro perguntando “para onde vou?” povoa a minha mente até os dias de hoje. Afinal, cada um daqueles negros libertados, como todos os outros no Brasil e em outros países após a abolição da escravatura, se perguntaram: para onde vou?
A transformação da economia baseada nas plantações com trabalho escravo em uma economia industrial-urbana atrelada às políticas migratórias marcou o destino dessas populações no mundo. Os migrantes europeus inseriram-se na nova estrutura de classes, e a população negra liberta foi deslocada. As trajetórias de vida variaram ao longo dos séculos; muitos deles ganharam a liberdade, alguns como alforriados, outros por meio da resistência, como a fuga e a reorganização em quilombos.
Libertados e longe de sua terra natal foram submetidos a uma diáspora, que por enfrentar todo tipo de discriminação racial e religiosa, traduziu-se em desigualdades sociais.
Passaram-se décadas desde essa integração forçada e os indicadores sobre a população negra ainda contrastam com os índices da população branca. Salário, educação, saúde e saneamento traduzem em cifras essa desigualdade ancorada na discriminação. Esses preconceitos refletem-se em uma participação desigual nos postos de trabalho, em menores salários e na exploração trabalhista.
Diversas análises de dados censitários revelam que a população negra ganha salários inferiores aos da população branca, seus índices de escolaridade são mais baixos e são poucos os que completam os estudos superiores. As populações negras habitam a região rural ou a periferia das grandes cidades. A falta de condições de higiene, assim como a falta de água potável e de tratamento de esgoto, se reflete nos maiores índices de mortalidade infantil. A desigualdade se expressa na distribuição de renda.
Em relação ao mundo do trabalho, os dados mostram que os negros ingressam mais cedo no mercado. Além disso, ocupam postos de trabalho de pior qualidade (limpeza, vigilância, carregadores e nas piores atividades manuais na escala da divisão do trabalho) e, em geral na informalidade e no trabalho escravo, recebem remunerações inferiores pelos mesmos trabalhos e apresentam, ao longo das diferentes faixas etárias, índices de desemprego progressivamente maiores, hoje atingindo aproximadamente 25%, entre os pobres e jovens, em sua grande maioria negra.
E os negros continuam na África e em qualquer país do mundo enfrentando taxas de desemprego maiores, inseridos em postos de trabalho de pior qualidade e, finalmente recebendo os mais baixos salários na divisão internacional do trabalho.
É por isso que quando vemos coletivas policiais mostrando aprisionamentos, as imagens reproduzidas são na sua grande maioria de negros. É por isso que quando vemos imagens internas de presídios, estas são na grande maioria de negros. É por isso que quando vemos reportagens de tragédias urbanas de deslizamento de morros e alagamentos, as imagens exibidas são na sua grande maioria de negros. É por isso que quando vemos notícias de desalojamento de invasões de terras no campo ou na cidade, as imagens são na sua grande maioria de negros. É por isso que quando vemos matéria nas filas do desemprego, na busca de assistência, nas filas dos restaurantes populares, nas imagens vemos na sua grande maioria, negros.
Desculpem-me os otimistas, que vêem o mundo florido. Digo que a luta dos negros permitiu a conquista de direitos civis, sociais e educacionais nos EUA, aqui e no mundo. Nos EUA, desde os anos 60, há 50 anos. Mas quando vemos imagens das tragédias, os negros continuam sendo o retrato da tragédia e dos presidiários, o que significa que os efeitos dos direitos conquistados há 50 anos não produziram os resultados desejados ainda. E, aqui, engatinhamos, e mesmo assim as elites que cresceram mamando e sugando os recursos públicos gritam contra os direitos civis, sociais e educacionais conquistados com tantos sacrifícios e lutas.
Ano passado, minha esposa me enviou o vídeo de uma música para eu escutar e assistir, e me emocionei reenviando a todos meus amigos. Trata-se de “Stand By Me/Playing For Change/Song Around the World”, que deixo aqui como homenagem a tudo o que os negros fizeram pela cultura e para a construção das riquezas no mundo, a que pouco tem acesso.
Veja o clipe de Stand By Me:
Emocionei-me, pois nos traz vontade, nos liga profundamente e transmite um desejo para continuarmos lutando pela reparação deste crime contra os negros, que tanto envergonha a humanidade. E respondendo a pergunta: “para onde vou”? Diria para vocês também respondendo ao refrão da música STAND BY ME, que sempre iremos juntos lutando contra as injustiças até o fim dos nossas vidas.
Dedico este artigo ao Seu Jordão, meu vizinho na adolescência em Campo Mourão, negro, pai de santo, que também foi meu pai. A Tia Zefa, negra, com quem morei na CEU, junto com o governador Orlando Pessuti, que foi nossa mãe e avó e e ao meu amigo Hasiel Pereira.
* Geraldo Serathiuk é advogado, especializado em Direito Tributário pelo IBEJ/PR e com MBA em Marketing pela UFPR. Email gserathiuk@yahoo.com.br.
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