Márcia Denser*
Entre dezenas de leituras da crise atual, me chamou a atenção um artigo publicado no número de março do Le Monde Diplomatique, O Retorno do Protecionismo, de Jacques Sapir, pela linguagem direta e poder de síntese. Segundo ele, não são os bancos que estão no cerne da crise. As desordens que causaram não passam de sintoma. O responsável é o livre-comércio, cujos efeitos vieram se somar aos das finanças liberalizadas.
A amplidão e a profundidade da crise reativaram o debate sobre o protecionismo, tocando-se num ponto especialmente sensível, a julgar pela virulência dos defensores do livre comércio, presentemente transformado em fetiche. Já o protecionismo desponta como verdadeiro tabu. E a recusa em identificar o livre comércio como causa da tormenta mostra que seus defensores abandonaram o universo da reflexão para ingressar na Ilha da Fantasia, nome dum velhíssimo seriado de tevê dos anos 70, apoteose de todos os clichês pré-capitalistas, “estrelado” por Ricardo Montalban, representante hollywoodiano do galã terceiromundista da década de 50, um anão-índio chamado Tatoo, coquetéis servidos em cocos, garçons e macacos incluídos.
Mas o fato é que o colapso desemboca numa realidade precisa: a do endividamento e da insolvência das famílias. Esta é a tradução financeira da deflação salarial, isto é, da diminuição da participação dos salários na partilha das riquezas, induzida pela pressão exercida pelo livre comércio, seja pelo efeito dos produtos importados, seja pela transferência da produção para fora dos países. O livre comércio provoca um duplo efeito depressor: direto sobre os salários e indireto pela concorrência desleal que ele possibilita. Para preservar o emprego, os governos repassam os encargos sociais das empresas para os assalariados. Tudo isso reduz a renda das famílias, que não conseguem manter seu nível de consumo a não ser recorrendo, cada vez mais, ao endividamento.
Nessas condições, não surpreende que o endividamento das famílias norte-americanas tenha explodido: em 1998, era equivalente a 63% do PIB dos Estados Unidos, chegando em 2007 a absurdos 100%! Até Paul Krugman foi obrigado a reconhecer que a deflação salarial importada via livre comércio exerceu papel importante nesse processo. Em certos países que seguiram o modelo americano, caso da Espanha, Irlanda e Reino Unido, se assiste a um empobrecimento relativo – e, por vezes, absoluto – da população.
A perda de renda dos trabalhadores dos países desenvolvidos não resulta em ganho para os países emergentes, mas serve para enriquecer ainda mais uma elite muito restrita cuja fortuna literalmente explodiu no decorrer dos últimos dez anos. Nos Estados Unidos, os mais ricos representavam 5% em 1985, acumulando 3% da renda nacional; em 2005, eles se restringiram a 0,1% da população acumulando 7,5% da renda nacional. Ou seja, as subcondições do planeta-favela já atingiram o coração do império.
Deixe um comentário