Renata Camargo
Janeiro de 2010, nos jornais…
…Enchente isola 2 mil turistas em Machu Pichu, no Peru. Temporal provoca estragos na Grande SP e no interior. Terremoto no Haiti é o pior desastre da história da ONU. Enchentes expulsam 400 de suas casas na Austrália. Estado do Rio tem 72 mortes confirmadas em deslizamentos. Nevasca isola meio milhão de pessoas na China. ‘Não está dando para suportar’, diz aposentado sobre calor no Rio.
Ainda em janeiro…
…Nevascas na Europa e na América do Norte atrapalham negócios. Enxurrada derruba ponte no Rio Grande do Sul. Mais de mil moradores estão desabrigados em SP. Enchentes destroem 15% das plantações de arroz no sul. Famílias atingidas por enchentes usam tubulações e containers como abrigo. Cerca de 500 casas devem ser removidas dos morros de Angra. Excesso de sol prejudica lavouras do Espírito Santo. Seca prejudica turismo nos Lençois Maranhenses…
Tudo isso aconteceu em janeiro de 2010 – menos de dois meses após o fracasso das negociações na 15ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas. As notícias de catástrofes naturais, tão intensas neste início de ano, chamam a atenção e levantam questionamentos.
Serão esses desastres naturais decorrentes simplesmente do aquecimento global? Será essa quantidade de tragédias coincidência ou um recado da natureza? Alguns cientistas e pesquisadores acreditam que as atuais tragédias são resultados já previstos, decorrentes da elevação da temperatura da Terra. E que a ocorrência de desastres tende só a aumentar.
De fato, algo decorre de anomalias do clima. Enquanto os morros de Angra dos Reis deslizam por causa das chuvas, a cidade do Rio de Janeiro derrete em calor, o estado de São Paulo inunda, os Lençois Maranhenses secam. Pequim, do outro lado do mundo, se afunda em neve e diversos outros lugares no globo passam por “inconvenientes”. É possível sim – mesmo sem consenso entre cientistas – encontrar alguma razoabilidade na teoria do aquecimento da temperatura terrestre.
Mas, ao menos no Brasil, tragédias decorrentes de chuvas intensas não são novidades. A cada ano, após uma enchente, repetem-se os diagnósticos e mantêm-se as promessas de mudanças. Os discursos são os mesmos: a culpa é a combinação de chuvas intensas e crescimento urbano desordenado; a causa são as ocupações em encostas; o problema é de drenagem, os bueiros não dão conta; a culpa é da impermeabilização das cidades e blá blá blá.
E na imprensa, mais uma vez:
Serra nega que obras na marginal provoquem enchentes. Kassab culpa crescimento desordenado. Cabral deu aval para construção em encostas de Angra. Sabesp diz que descarregamento de represa não colabora com enchente. Obras para evitar enchentes em SP devem ficar prontas em um ano. Lixo jogado nas ruas é uma das principais causas de enchentes em SP.
Durante discurso na cerimônia de comemorações do aniversário de São Paulo nesta segunda-feira (25), o presidente Lula relembrou sua “saga pessoal” de enfrentamento de enchente e exaltou sua trajetória em ruas alagadas desde a década de 1950. Lula contou que chegou a São Paulo em 1956 e foi morar na Vila Cariosa, “que dava enchente todo fim de ano”.
Ouça aqui o discurso de Lula
O presidente fez questão, em seu discurso, de dizer que “não é de hoje que dá enchente” em São Paulo e ressaltar que “obviamente gostava” quando sua rua alagava, porque “não ia trabalhar”. Alguém me explica o que o presidente Lula quis dizer com esse discurso? Será que ele e demais governantes pensam que o problema da enchente é “assim mesmo”, sem soluções? Que é só esperar o próximo ano e as próximas vítimas?
O terremoto do Haiti – que pode ter matado 200 mil pessoas e tem como consequências cenas que lembram as do Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago – reflete uma coincidência trágica de desastres naturais que, de certa forma, fogem ao controle do homem. Mas, aqui no Brasil, essa sequência de tragédias nem sempre é mera coincidência, recado da natureza ou consequência inédita do aquecimento global.
Esse ciclo de desastres no Brasil é, em parte – a parcela previsível, ou seja, a ocupação desordenada, a impermeabilização do solo, o desmatamento –, reflexo da postura de governantes, de políticos, de empresários, da dona Maria, do seu José, do seu Manoel da vendinha da esquina, da estudante, do cobrador de ônibus e de todos. Sinto que, muitas dessas tragédias no Brasil são como puxões de orelha para um país que ainda patina na resolução de seus problemas ambientais, urbanísticos, estruturais e culturais.
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