Raimundo Caramuru Barros*
Do ponto de vista histórico, as civilizações da Mesopotâmia de origem não semita são as mais antigas (3.500 anos antes de Cristo) dotadas de uma administração pública, segundo os registros hoje conhecidos. Essas civilizações influenciaram significativamente as civilizações helênicas da Grécia antiga, sobretudo as figuras de Platão e Aristóteles (séculos V e IV antes da era cristã). Na China (Império do Meio) destaca-se a figura de Confúcio, um filósofo e notável administrador público durante os anos 532 a 517 antes da era cristã. Na bacia do Mediterrâneo, a partir da criação da (Res Pública) ou República (300 anos antes de Cristo) a plebe romana teve acesso à administração pública ocupando as funções de tribunos, questores, edís, censores e pretores. No subcontinente indiano notabilizou-se o Império Maurya (322-185 antes de Cristo), que no seu período de ouro chegou a abranger os territórios hoje ocupados pelo Paquistão e pelo Afeganistão. Seu sucesso é atribuído em grande parte à qualidade de seus administradores públicos.
Com o surgimento e a expansão dos Estados nacionais modernos, a partir do final do século XVIII e início do século XIX foi sendo progressivamente estabelecido o primeiro pilar da administração pública contemporânea: uma ciência abrangente e multidisciplinar operacionalizada por uma tecnologia dotada dos mais avançados sistemas de comunicação e transparência, de uma mais apurada projeção estratégica de médio e longo prazo, bem como técnicas de engenharia e métodos mais eficientes para arbitragem de conflitos.
Com efeito, enquanto ciência, a administração pública requer hoje conhecimento de ciências políticas, economia, ciências da vida, psicologia, demografia, ciências do comportamento humano, legislação administrativa. As tecnologias para sua aplicação prática exigem domínio das relações entre uso do solo, condições climáticas e sustentabilidade da vida e dos seres vivos no Planeta Terra.
O segundo pilar da administração pública do século XXI estabelece o primado da cidadania e do conjunto da sociedade, na sua relação com o Estado. Enquanto a administração privada fundamenta-se na relação empresa – cliente, a administração pública está a serviço do bem comum de toda a sociedade, promovendo o exercício da cidadania, para assegurar a segurança pública, o bem-estar da sociedade e o pleno exercício da liberdade e da responsabilidade de cada cidadão. Este pilar abrange o exercício da cidadania nas suas cinco dimensões: cidadania política (não apenas eleitoral) com participação direta ou indireta em todas as decisões que afetam a segurança e o bem-estar da sociedade; cidadania civil (respeito e implementação dos direitos humanos fundamentais); cidadania econômica com oportunidade de participação no aproveitamento dos recursos naturais e participação no mercado de trabalho; cidadania social pela superação de todas as discriminações e exclusões decorrentes das diferenças de gênero, raça e condição social; cidadania cultural com liberdade de expressão para todas as iniciativas culturais geradas legitimamente no seio da sociedade.
O terceiro pilar consiste na organização do Estado de direito na prestação de seu serviço à sociedade e à cidadania. No caso do Brasil essa organização caracteriza-se pela partilha das responsabilidades dos três subsistemas que compõem o Estado nacional: Executivo, Legislativo e Judiciário. Além disso, a organização envolve também os níveis fundamentais deste Estado: município, unidade da Federação, União e relações internacionais. Com a amplitude e o aprofundamento do processo de globalização neste início do século XXI, as relações internacionais assumem uma nova relevância.
Para que essa organização esteja efetivamente a serviço do conjunto da sociedade e do exercício da cidadania, faz-se necessário que ela no médio e longo prazo conduza a um regime democrático pleno e integrado. Com efeito, a democracia deve expressar as cinco dimensões da cidadania e por isso deve orientar-se no médio e longo prazo para uma democracia política, civil, econômica, social e cultural. Por isso, a sociedade brasileira deverá orientar-se para atingir progressivamente a democracia plena e integral, como fruto da integração dessas cinco dimensões.
O quarto pilar refere-se às vantagens de o Brasil alcançar uma conjugação harmoniosa e simultânea entre os três modelos mais relevantes de democracia hoje vigentes na maioria dos países que os adotam: a democracia representativa; a democracia participativa e a democracia direta.
A democracia representativa – através do Congresso Nacional, das assembléias legislativas estaduais e das câmaras municipais de vereadores – é o modelo básico adotado pelo país. Deve continuar e ser sistematicamente aperfeiçoado. A democracia participativa foi introduzida pela Constituição de 1988 através de quatro mecanismos: o plebiscito, o referendum, a iniciativa popular e o “impeachment”. À medida que a sociedade civil conseguir se organizar e mobilizar a população, esses mecanismos podem ser cada vez mais amplamente aproveitados.
De outro lado, esses mecanismos – em casos a serem criteriosamente definidos em lei complementar como fruto de uma indispensável emenda constitucional – podem ser utilizados para o exercício de uma democracia direta, isto é, adquirirem força de lei sem passarem pelo crivo e pela modulação do Congresso Nacional. Considerando os progressos dos meios de comunicação e a necessidade de superar as desigualdades gritantes, as discriminações e exclusões, que desfiguram a sociedade brasileira, este exercício da democracia direta pode fortalecer o exercício da cidadania e contribuir decisivamente para a construção no país de uma democracia plena e integrada.
*Filósofo e teólogo, com mestrado em Economia nos EUA, foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009), entre vários outros livros.
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