O preço da civilização é o sacrifício humano – ouvi esta frase num filme, dita por um general americano vivido por John Malkovich a propósito das vítimas de testes nucleares, “morrem mil para quê milhões sobrevivam”, pura retórica hollywoodiana repetida em dezenas de filmes recentes e antigos. O fato é que o tempo histórico – a História em si – é determinado pela elite dominante, o topo da pirâmide, que conta a história conforme a ideologia de dominação das massas inconscientes do tempo (“sábio é aquele que organiza o calendário” – segundo o I Ching, Hexagrama 49, Revolução).
Modernamente, com o excedente de produção, emergem as classes médias com relativa liberdade para pensar, trabalhar, organizar-se, situar-se no tempo, com possibilidade de prever os movimentos da História e adaptar-se a fim de se manter nessa linha mediana de relativa liberdade e vida suportável, conquanto a classe dominante introduza instrumentos ideológicos (cultura de massa, filmes de Hollywood, marketing, consumismo) na produção da vida cotidiana e social com o objetivo de promover o rebaixamento do nível cognitivo, de maneira que as classes médias permaneçam médias mas à custa duma pesada alienação e degradação passivas.
Uma melhora ocorreria se mais elementos médios se tornassem conscientes e se organizassem no sentido de conter o avanço da dominação. Ainda que toda a mídia esteja cooptada, todo lazer e diversão, toda educação, todo turismo, toda ciência, persistem brechas no sistema de difusão ideológica, através das quais se entrevê a costura e o desenrolar da trama da verdadeira História. Tais brechas são a internet, os livros, as redes de relações sociais. Não é muito, mas é o suficiente.
É preciso manter-se lúcido, desalienado, para manter-se na classe média onde o nível de vida tornou-se suportável graças à relativa liberdade de ir e vir, pensar e trabalhar, compreender e antecipar os movimentos da História para não ser tragado pelos acontecimentos. Enquanto o preço da civilização for o sacrifício humano.
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Perdida a hegemonia moral desde as trapalhadas no Iraque, hegemonia que vem sendo minuciosamente erodida desde o fim da guerra fria (1989) e início dos bombardeios “cirúrgicos”, desde o Golfo (1990), a Bósnia (1999), então o 11 de setembro (2001), o Afeganistão (2003), e ainda mais agora com a Guerra no Cáucaso, onde, segundo os relatos que chegam, o estado de espírito na República da Geórgia se resume numa pergunta atônita: onde estão os americanos que disseram que nos protegeriam, que eram nossos amigos? Porque os georgianos descobriram só agora e na base da porrada o que os latino-americanos já sabem há mais de um século (e também na base da porrada): os EUA não estão falando sério quando alardeiam seu compromisso com a “liberdade e a democracia”.
Em meio a uma fortíssima crise financeira sem precedentes, os Estados Unidos (e seus mui amigos do G8) acompanham o deslocamento do eixo do poder mundial na direção da China, o que absolutamente não é o mal menor para nós, ocidentais, mas este deslocamento talvez interessasse, uma vez que reintroduziria a polaridade e, com ela, um certo equilíbrio de forças.
Por outro lado, muita coisa mudou desde o fim da Guerra Fria: 1) A Rússia está se reerguendo econômica e militarmente e não está mais afim de levar desaforos pra casa (vide Geórgia); 2) Esta China é um colosso voraz e também uma voraz imponderabilidade constituída por milênios de história e 1,3 bilhão de habitantes; 3) Mas a lógica de um mesmo capitalismo canalha, triunfante e sem fronteiras agora permeia e corrompe de cabo a rabo todas as gradações do espectro geopolítico e precisamente por causa deste último detalhe acredita-se que: 4) Nem chineses, nem russos e muito menos norte-americanos, ninguém irá se empenhar em tornar-se “os mocinhos do planeta”! Ou seja, na reconstrução, mesmo hipócrita, de alguma espécie de utopia. De alguma espécie de ideal.
Capitalismo ou barbárie? Tanto faz, até porque o sacrifício humano continua sendo o preço da “civilização”.
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